quarta-feira, 7 de julho de 2010

SACANA BRANCO

José Augusto Fontes

- Seu Lauro, o Sacana Branco nasceu hoje, de novo. Escapou fedendo. Foi atravessar a rua, bem aqui, correndo ali para o lado do Hotel Chuí, pisou com um pé na sandália de borracha do outro pé e caiu, no meio da rua, quando vinha um carro dali, da sua casa pra cá. O carro freou em cima, com ele embaixo, por um triz não atropelou. O pneu encostou nele, na cabeça, nós vimos o menino morto, ainda bem que não era a hora. Foi muita sorte. Esses meninos de hoje em dia...


Eram os barbeiros, Jucá, Chico, Anacleto, Osvaldo, Ziza, eles viam o menino fazendo arte, danação, estripulia, o neto do velho Lauro, naquele dia, quase se finava. Os barbeiros sempre estavam por ali, os mais velhos e os que foram chegando, como o Gilmar, o Zezinho, o Evanir, o Nilo. Aquele menino fazia parte da paisagem, beirando a Cinelândia, o cabelo em estilo militar, cortado com a máquina manual, indo e voltando pela Escola Normal, pelo hotel do seu Valdir, passando fardado, passando de calção ou de calça comprida, um pinto calçudo, passeando com o acontecer da vida, dos dias, passeando com o pensamento de vento, pernas pra-quê-te-quero? Confiado no velho, o menino fazia e acontecia. Na frente do velho, era vara verde.

- Olha, Jucá, esse menino é assim, cheio de traquinagem, eu gosto muito dele, desse Sacana Branco. O brancoso é filho único do Chico Antônio. Qualquer coisa com ele por aqui, é só me avisar, se ele passar por aqui, na boca da noite, é só me chamar, a não ser que eu mande ele ali, nos turcos, comprar esfiha, quibe e fanta laranja. O comissário aí do Cine Acre já sabe.... Mas, agora, quando chegar em casa, dessa de hoje ele não escapa, ainda bem que o camarada vinha devagar. O carro era de praça? Capaz de o Severino ou o Zé Elói conhecerem.... Ora, muito obrigado, só me faltava essa. Olhe, fico muito agradecido. Boa, até amanhã!

O menino era arisco, magro e comprido, dedos finos, unhas roídas, meio dentuço, crescia na sombra do velho, era bem conhecido naquele pedaço, com a trunfa loura. O pé era um leque. Do campinho da Maternidade, as pernadas subiam pelo Meu Cantinho, e os olhos estacionavam no Stadium. Alguém esquece as jogadas do Dadão? Um toque curto pelas imediações da Capoeira, cruzando para a antiga sede do Juventus e já vai ladeira abaixo pela Marechal Deodoro, passando a vista pelo Colégio Acreano e o dos padres, espreitando o comércio, para retomar a Getúlio Vargas, beirando o Bar Municipal e a quadra do Palácio, conferindo a Pernambucanas e já de subida para a Radional, quem sabe ali, alguma mensagem dos locais distantes, do futuro, do progresso. Como o tempo vem de longe, a bagagem até que é maneira.

Naqueles tempos, o tempo ainda não franzia a testa. Um giro pela Praça do Quartel, parar para ver as meninas no Coreto e tomar um Libertador na Lanchonete Cinelândia. Uma esticada ao Colégio das Freiras e região do Papoco. A chave dos quartos pesava mais que as moedas no bolso, mas o menino cheirava a leite. Olhando pra trás, parece que tudo foi no mesmo dia. Era um tempo em que os ventos torciam o rabo. A teia do tempo mistura tudo e a gente vai narrando como se cada momento estivesse coladinho ao outro. Para trás, as coisas ficam mais juntas. Com os barbeiros a conversa não é tão mole. Eles passam a tesoura no tempo e esperam nascer de novo.

Os barbeiros viam aquelas coisas, sabiam tudo, ainda vêem, sabem além de mais adiante. Sabiam até das manhas. O Sacana tinha alergia ao Talco Gessy. Certa vez, o Chico Cruz passou a pluma com o Gessy e o cangote do Sacana Branco ficou todo vermelho, empolado, parecia sangue vivo. Dali em diante, seria Johnson na pluma ou Água Velva na mão. Os barbeiros são lenda viva, são arquivo e constatação, sabem, criam e lembram, se duvidar, reinventam tudo. Por ali, a cidade viaja e volta, lá está o termômetro da política, lá chegam primeiro, a novidade e a saudade, a certeza e alguma desconfiança, a brincadeira, a alegria, uma boa lembrança da infância, a história da cidade.

- Meninoooo! Vem cá, brancoso! Aqui, na minha frente! Os barbeiros me contaram tudo. Anda logo, cabrinha bom de peia!

Dizia e agarrava na orelha do menino, na costeleta, ordenava, sentenciava, mostrava quem era o chefe. Já havia confirmado com os motoristas de praça, o Zé Elói, o Severino, o Baiano (atualmente reside na Cohab do Bosque II), o Micharia. Não era possível cogitar dúvida. Ele não errava, era bate-pronto, decisão rápida, cumprimento imediato. Nem era castigo. Queria fazer o certo, que só poderia vir dele mesmo, pois ele era o próprio conceito. Agora dá pra dizer: com o menino, o coração dele segurava a mão. Olhando bem, o olho acariciava. Foi o único engano. Ele pensou que o Sacana não percebia o gostar, por trás do jeito de valente. Achava que dissimulava com o esbregue.

Os barbeiros ainda comentam casos do velho. Tem a história do vereador caseiro, que teve de chegar mais cedo, para não ter o ponto cortado. A do vereador que discursou contra o general, e foi aparteado pelo coronel Lauro, na beira da rua. São tantas. Dia desses, na barbearia, o Ziza e o Osvaldo relembravam. Depois que o velho se foi, perdeu-se um pouco da graça, a gente teve que seguir, definir opções, decidir. Antes, bastava olhar para ele. Isso nunca foi ruim. Crescer, aprender a tomar as próprias decisões, é tudo muito bonito. Com o velho era mais. Era simples saber sobre tudo, ele sabia, era só olhar e compreender. Tem vezes que a saudade sai de seus cuidados e dá na gente.

- Puxa daqui, Sacana Branco! Não vê que eu estou conversando com meu amigo! Olha, Antão, esse menino, esse menino, eu vou te contar... acho que cedo vai se formar... Dá boa tarde para o seu Antão, menino! E vai saindo, aqui é conversa de homem, você ainda precisa engrossar o cangote, crescer a crista, tomar garapa ferrada, entender os noves fora, aprender com o mestre tempo, não é, Antão? Puxa, capina, ora muito obrigado!

O tempo segue fazendo saudade, num devagar-ligeiro que engana os olhos e esbarra nas lembranças, locais, pessoas. Todos viajamos no tempo, ora um velho cheio de truques, ora um menino que renasce nos filhos dos viajantes. Seguimos fazendo tempo, ele passando, para renascer, nos enganando, fingindo que passa, enquanto passamos nós, sem saber para onde ele vai, achando que sabemos nosso prumo. Cada passar é diferente do que, ainda ontem, ainda agorinha, havia por aqui ou mais ali. Basta perguntar aos barbeiros. O Sacana Branco agora passa sem correr, olha, lembra, tem saudades, tenta esticar o tempo, vendo que olhar pra trás é mais fácil. Se esquecer algo, basta perguntar ao Osvaldo, ao Ziza, ao Chico, ao Jucá (agora falecido). Eles não se enganam. Os barbeiros sabem tudo. Devem ter uma navalha para mudar a face do tempo.

José Augusto Fontes é poeta, cronista e juiz de direito no Acre

Um comentário:

Fátima Almeida disse...

Agora que a prefeitura funciona em vários prédios, está na hora de reabrir o Hotel Chauí, como antigamente, com o mesmo bar na calçada. O colégio dos padres precisa ser tombado. O bar Municipal precisa ser reaberto, mesmo que não venda bebidas.O café do teatro fechou porque o aluguel cobrado pelo governo é muito alto e ninguem quer participar da licitação.