domingo, 6 de junho de 2010

TEMPO BOM ERA AQUELE

LYSIAS ÊNIO DE OLIVEIRA

Tempo bom era aquele
em que eu acreditava em bicho-papão,
alma penada,
mula-sem-cabeça.

Pudesse, voltava em cima do rastro,
mambembe,
vadio,
e ficava olhando a água do rio
lamento, barrento,
correndo seu destino sem parar.

Tinha casa com quintal e cajueiro;
o chiqueiro, lá nos fundos,
e poleiro de galinha.

Eu assistia a cobertura das éguas,
a rigidez dos corpos,
o castrar dos porcos,
as vacas parindo.

Era tudo sacanagem.
Era tudo lindo!

Sacanagem aprendida com a prima Sofia
que estudava na capital;
mas, nas férias,
se escondia atrás do capinzal
e me bolia.

Sabatina gostosa.
Moleca, safada.

Êta mundo bom, meu deus...
Êta férias paidégua!

A gente começava fazendo cosquinha
um no outro.

- Mostra o teu que eu mostro a minha.
Ela pedia.

Eu, bocó, roceiro, abestalhado, escondia.
Tinha vergonha.

- Então, vamos brincar de médico.
Ela insistia.

-Vem operar o meu apêndice!

Meus dedos percorriam aqueles caminhos
brancos e macios
como a lama pegajosa que espirrava
pés descalços.

Hora de dormir, o sono não vinha;
dentro da rede dedos nervosos
o cheiro de couro cru
em minhas mãos.

Aí, era aquela agitação dentro das calças
que terminava como lamparina
que se apaga
deixando tudo na escuridão.

- Tô desconfiada deste menino,
(dizia minha mãe)
está ficando mofino.

Meu pai não dizia nada,
(tinha a certeza certa)
calava.

As férias chegaram ao fim.
Tia Maria voltou para a capital.
Adeus, Sofia!
Adeus apêndice...

Uma procissão de imagens caminha
minhas lembranças...
Papai tirando água da cacimba.
Mamãe areando os pratos de ágata.

Meia manta de carne de sol
pingando gordura
no braseiro do fogão de lenha.

As vezes, noitinha, a gente sentava em frente de casa
e ficava assistindo os vagalumes
acendendo o verão.

As noites de medo quando uma ave agoureira passava
em vôo baixo
rasgando mortalha.

O cheiro da vida, na manhã que voltava
no fundo dos quintais...
a mãe-natureza
parindo animais.

E, no desejo da estação,
o cheiro,
o gosto,
o sumo
dos frutos da terra.

O poeta Lysias Ênio de Oliveira é autor da maioria das letras das músicas do irmão dele, o compositor João Donato. "Véio, que bom estar revendo meu tempo de criança com olhos de adulto. Um abraço daqueles", escreveu ao enviar o poema. Na foto, na companhia de minhas filhas Iara e Jael.

Um comentário:

Jalul disse...

Lysias, quando os meninos da Candinha, tua prima, e do Almada, o grande professor, eram adolescentes, contam que, de repente, começaram a amofinar e amarelar. Os bichinhos tinham a cor ocre da açafroa. Cuidadoso, Almada procurou o Dr. José Barral y Barral (lembra dele?). Pois bem, sorrindo cinicamente, Barral mandou fazer hemograma completo, urina e fezes.
Veja, Lysias, estou contando tal qual me foi contado.Esse é um aparte importante.
Os resultados dos exames feitos no laboratório do Manoel Hipólito de Araújo, meu pai,acusaram tão somente uma pequena anemia.
ANEMIA? mas como? Esses meninos se alimentam bem demais! Anda, Almada, leva os exames pro Barral, ordenou Candinha.
No consultório, com cara de preocupado, Almada esperava a receita com ansiedade. Dali sairia direto para a pharmacia do Nilo Bezerra para comprar o Sulfato Ferroso. Ainda fez planos de mandar Dona Candinha colocar um prego enferrujado na panela do feijão, juntamente com dois bifões de fígado cru, do açougue do finado Raimundo Mourão.
Barral olhou para aqueles exames, olhou de novo, mais uma vez e deu uma gargalhada. Pegou o bloco de receita e anotou: amarre as mãos desses meninos para trás 3 x ao dia. No final da receita, uma observação: retire as revistas do banheiro e as escondidas no colchão.
Veja, Lysias, esses meninos não souberam da Sofia que te enfraqueceu. Tempo bom o nosso, não foi?
Espero que sua passagem pelo Acre tenha reforçado a verve poética.

Grande abraço.

Mande um endereço ou cx postal para mandar os livros.