quarta-feira, 30 de setembro de 2009

CINEMA, GIBIS E AVENTURAS

José Augusto Fontes

Era tempo de ver filmes e trocar gibis pela Getúlio Vargas, avenida e cenário principal da minha infância. O percurso dos cines e das trocas de gibis iniciava no Cine Acre, na primeira sessão matinê. Giuliano Gemma dava tiros para todo lado e a pipoca se transformava em refúgio. Sabe-se lá, tanta bala, melhor encher a boca de pipoca. A meninada batia nas cadeiras de madeira, torcia e gritava, quando “o artista” vencia os bandidos, os mexicanos, os índios e tudo que não fosse mocinho. Nenhum tinha tempo para ver que não poderia ser diferente. Meninos que seguem lembrando a música do Django. Mesmo estando hoje distantes e calados, como esquecer?

Naquele tempo, apesar de furado, o dólar já fazia sucesso. Bang-bang era o apelido do filme, uma espécie de rótulo, de senha, para todo mundo entender do assunto e acessar os próprios registros de alguma cena espetacular. O genérico era faroeste, tão longe oeste. Enquanto Fernando Sancho ia perguntando: “como te llamas, Chico?”, os gibis do Tex, Fantasma. Tio Patinhas e Zé Carioca já estavam separados para a troca. Compondo o ato, o Chico respondia: “Miguel, señor...”. Era o fim dele e a confirmação da fama de mau do “bandido”. Ouvia-se o tiro. Bum! “Llamavas!”...

Outro “bandido” mau, pouco falante, era o Klaus Kinsky, com olhos que jamais poderiam ser de “artista”, de bom moço. Ninguém torcia por ele. Quem imaginaria que dali viria a Natascha? Dos gibis, Mandrake, Lothar, Zorro, Tonto, Silver, todos ouviam os gritos do Tarzan vindo das telas dos dois cinemas, enquanto a Chita comia bananas, que já eram exportadas a preço peculiar. O Acre era terra fértil para investimentos. O país parecia que ia endurecer, era amar ou deixar. Ninguém queria saber disso. Exceto um ou dois, todos iam ficar por aqui. Mudando a conversa, hoje, quase ninguém fala disso.

Por onde andam aqueles meninos, que seguiam adiante, com os gibis empilhados no braço? Havia a Praça do Hotel Chuí, também chamada de Praça do Quartel, de Praça da Escola Normal, ou de Pracinha. Dali pra frente, a gente dizia que “ia descer”. “Você já foi lá embaixo hoje?”, “vou descer agora”... Descia-se para o Cine Rio Branco, para o comércio, para o Palácio, para a loja Pernambucanas, para o rumo da ponte. De volta, subia-se, na direção do Cine Acre. Parece que ninguém notava que, logo depois, vinha a Ladeira da Maternidade. E, nesse rumo, primeiro vinha a descida.

Mas o subir ou descer concentrava-se no trecho entre a Pracinha e as imediações do Palácio Rio Branco. A conversa descia beirando a Casa Zeque, abicorando A Garota, mas ela nem notava. Era fácil chegar à Esquina da Alegria. Ir adiante, para o Cine Rio Branco, onde Dio Come Te Amo passou mais que gente pela roleta. O gordo, na entrada (até hoje ele é porteiro, lá pelo 14 Bis), fingia que era mau, mas sempre foi mole, coração mole. Era da turma que gostava de livrinhos sem gravuras, só texto de fantasia abundante. Hoje, a gente sabe, fantasia não é imaginação, Popeye não é Asterix.

A Pracinha rendia, entre as sessões, depois delas, antes da missa e na saída, até a hora da boateca e no intervalo, até a tentativa de entrar na boate do Rio Branco, que não era para fedelhos. Mas a gente tentava, de três ou quatro, uma dava. “Esse cara, até pra cá traz gibi...”. “Será que não sabe dançar? Tem que chegar junto!”. Mas era assim, os mais tímidos insistiam em algo que pudessem participar, comentar, fazer afirmação. Dançar é diferente de ler, e nosso assunto é gibi, é cinema, sem esquecer alguma aventura. Hum, que saudade, O Último Tango em Paris tinha cenas raras, mas a idade não permite revelar.

Quem imaginaria? Olhar pra frente e fantasiar, mas fantasiar muito, ainda não chegaria no que chegou. Não estava escrito em nenhum gibi. Agora, a gente vê que só é fácil olhar para trás. E mesmo olhando, ficam poucos para dizer, do muito que havia, que há para lembrar. Mas fantasiar não é lembrar. Assim, a gente imagina, finge que lembra, às vezes, até acerta. Tanta fita, rolos e rolos, mas nenhum Ben-Hur trilhou essa fantasia. Ninguém mais diz que vai descer, os cines já não existem, e ainda há quem fale nisso, mesmo sabendo que o tempo dos gibis era outro.

A vida veio contando esses quadrinhos, veio criando essas tantas cenas e enredos, que a gente não pode mais reproduzir. Quase nem é possível imitar. Ficaram poucos meninos. As muitas lembranças, a gente faz-de-contas que são relatadas para outros meninos, mesmo sendo ditas para dentro de nós. Quem iria esquecer? Se fiquei falando quase só, é porque não pude ver olhos calados, até distantes, quem sabe? Se não for assim, finjo que falo para mim, vou imaginando. A vida encena cada coisa. A gente vai duelando, a lembrança contra o tempo, mesmo sabendo que o tempo dos meninos era outro.

José Augusto Fontes é poeta, cronista e juiz de direito em Rio Branco. Autor de "Páginas da Amazônia - Proseando na Floresta", comemora por ter ultrapassado a marca de mil exemplares vendidos, após a obra alcançar grandes livrarias e lojas virtuais, como Saraiva, Submarino, Cultura e Americanas. É um feito inédito para uma publicação regional, sem apoio governamental ou privado e sem a carga publicitária de grandes editoras. Ao contrário de alguns imortais, Fontes escreve e não participa da Academia Acreana de Letras.

13 comentários:

Sílvio Francisco Lima Margarido disse...

na calçada...tarzan esperava que algum comprasse um gibi pra comprar o ingresso....senão valia trocar o que eu não lí....o que era difícil.

Rosangela Barros disse...

Era um momento que o escurinho do cinema, apenas se chupava drops de anis e acompanhava-se o som das rojadas de balas enchendo a boca de pipoca. Mas Por onde andam aqueles meninos? Devem estar seguindo adiante com as cores da sedução capitalista, devem estar também lendo os gibis da promiscuidade do excesso consumista da modernidade, ou até mesmo expropriando a natureza para a construção de suas super-estruturas cheias de cores monumentais.
Quem sabe não estão sobrevoando às nossas cabeças com seus delírios ilícitos!... Por andam aqueles meninos, se perderam no caminho? Encontraram-se com as “louras” do Fastão? Por onde andam vocês? Estão nas mesas dos bares, submergindo seus fracassos? Atrás das grades, pagando seus pecados? Entorpecendo-se para fugir do Diabo? Subindo e descendo as ladeiras da vida? Por favor! Se cansem! Caiam bêbados, entorpecidos, Eu os acolherei! Mas votem! Voltem logo, Eu te espero! Nós estamos te esperando com “Meninos Maus e Mulheres Nuas”!...
Adiante, sempre adiante sem olhar para trás!

Willyan Sales disse...

belíssimo texto

VILA VERDE disse...

Academia Acreana de Letras?
Não seria melhor, "sem letras". Não, Dr. José Augusto! Fique longe daquilo. Ali a exceção virou regra. São pouquíssimos os que deveriam ali estar. Cuidado para não ser confundido com os "medíocres das letras"... coisa que o senhor não é!!!

Vingador disse...

Bem,
Este texto me trouxe boas lembranças, quando sem preocupações andávamos nos sábados e domingos a tarde procurando o melhor filme entre o cine Rio Branco e o cine Acre, dando uma paradinha na praça da PM...Eita! que tempo bom aquele.

Rosangela Barros disse...

Bom Dia, Altino!

Apenas uma Errata, estava pensando assim:
Era um momento que o escurinho do cinema, apenas se chupava drops de anis e acompanhava-se o som das rojadas de balas enchendo a boca de pipoca. Mas Por onde andam aqueles meninos? Devem estar seguindo adiante com as cores da sedução capitalista, devem estar também lendo os gibis da promiscuidade do excesso consumista da modernidade, ou até mesmo expropriando a natureza para a construção de suas super-estruturas cheias de cores monumentais.
Quem sabe não estão sobrevoando às nossas cabeças com seus delírios ilícitos!... Por andam aqueles meninos, se perderam no caminho? Encontraram-se com as “louras” do Fastão? Por onde andam vocês? Estão nas mesas dos bares, submergindo seus fracassos? Atrás das grades, pagando seus pecados? Entorpecendo-se para fugir do Diabo? Subindo e descendo as ladeiras da vida? Por favor! Se cansem! Caiam bêbados, entorpecidos, Eu os acolherei! Mas votem! Voltem logo, Eu te espero! Nós estamos te esperando com “Meninos Maus e Mulheres Nuas”!.. (Adriana Calcanhoto).
"Onde será que isso começa
correnteza sem paragem
O viajar de uma viagem
A outra viagem que não cessa
Cheguei ao nome da cidade
Não a cidade mesma espessa
Rio que não é Rio: imagens
Essa cidade me atravessa
Ôôôô êh boi êh bus

Será que tudo me interessa
Cada coisa é demais e tantas
Quais eram minhas esperanças
O que é ameaça e o que é promessa
Ruas voando sobre ruas
Letras demais, tudo mentindo
O Redentor que horror, que lindo
Meninos maus, mulheres nuas"
(Adriana Calcanhoto).

A academia Acriana de Letras não gosta de Bons Meninos!
Adiante, sempre adiante sem olhar para trás!
Amem-me ou Deixem-me Viver em Paz!

rcastela disse...

Bom texto, quem viveu lembrará.
Agora ir ver filme no dia da paixão e sair com algumas freiras ao lado todas chorosas...

Depois de um Bruce Lee sempre tinha algum leve enfretamento com as mãos vazias, logo ali, a teoria é cinza e verde é a árvore da vida - Goethe - !

As filas eram enormes, algumas ultrapassam a Dona Alegria que ao final era só tristeza(falência da borracha.

Os seriados eram para abrir o apetite, Flash Gordon andava por lá.

Parabéns, devemos divulgar o livro.

saitica disse...

Que lembranças hem ? ...
Não nasci em Rio Branco mas me senti também nesse mundo de gibis e cinemas. Me reportei a minha terra Rio Real Bahia.
Contem mais, assim fico sabendo que continuo vivo !
abraços,
daniel de andrade

Anônimo disse...

Que maravilha esse texto,onde pude navegar ao meu passado e de tantos...
onde pude ir novamente ao meu lado menina - moça,viajando e reencontrando pessoas amigas!
Repaginei minha infancia-adolescencia,revivi histórias e reencontros!
que delicia saber que ainda existe magia na cabeça do escritor,com sua sutileza encantamento!
Muito Agradecida estou por ter despertado mais uma vez!
Estou realmente emocionada...como é bom vi-ver e rever tudo isso!

Cheiros Outonais Madrileños!!!

Muaaaac!
Bom dia altino!

Regina Cavalcanti disse...

Lindo texto, voltei no tempo... Sempre comento com meu marido e filhos a Rio Branco da minha infância. Muito bom! Parabéns ao autor!

Unknown disse...

Lembro bem dessa epoca ; tinha o cine Recreio tambem no segundo distrito.La passou o famoso "Planeta dos Macacos " Tempos que a gente corria do famoso "Lona ".

Marcos Aurelio

Unknown disse...

Muito bom o texto do colega, amigo e letrado Zé Augusto. Como eram bons aqueles tempos! Tenho poucas lembranças porque por aqui só passava nas quatro festas do ano, vindo de barco de Boca do Acre pra cá. Relembro de filas quilométricas de "Dio Come Te Amo" que subiam a Getúlio Vargas, baixavam pela Benjamin Constant e subiam pela Marechal Deodoro rumo ao Banco Real, naquela época "Supermercado Dois Oceanos". Que tempos! O que será que fazia levar tanta gente pra ver um filme brega? Mas aquilo era o must, assim como ver o "Dolar Furado". Aquela música nos fazia transceder. Boas Lembranças Zé. Relembrar é viver, e isso faz bem pra evitarmos o mal de Alzheimer.

A Vida Secreta de uma Garota disse...

Porra Altino, tú é velho heim, lembrar do Cine Rio Branco e Cine Acre. Beleza, foram tempos bons.
Um grande abraço do amigo, Thomas Jefferson