domingo, 28 de dezembro de 2008

GUARDAR O MUNDO EM SI

José Augusto Fontes

Há pessoas que dedicam a existência a uma causa, a um modo de vida, a um projeto - coisas que abraçam e não largam mais – como se tudo ao redor sejam detalhes ou adjacências da estrada única e do seguir invariável. Desde cedo, têm um fim definido. Essas pessoas me atraem principalmente porque, ao contrário de mim, dão passos contínuos no mesmo caminho, amam uma opção imutável e se entregam totalmente à escolha. São pessoas fiéis a um amor, são de eterna e exclusiva paixão. Eleito o rumo, tudo no percurso vai sendo colhido para enfeitar o destino perene.


Destino perene? Quem ama uma ciência, como a jurídica, ou uma profissão, como o jornalismo, vive querendo enobrecê-la, dela se nutre e para ela se dá. Quem se mete a comentar essas paixões, pode até dizer que há uma simbiose, mas a ciência não ama nem sente, a ciência se diz racional e objetiva. A profissão seria, mais a mais, dita como um meio de ganhar a vida. Será? Quem ama uma ou outra não pensa assim. E é disso que nasce minha atração pelos de querer único, pelos dedicados de toda a vida. Dedicados? Um artesão da palavra ou da música, um jurista ou um jornalista, quem ama a letra enfeitada ou a sonora, a letra positivada ou a letra informativa - e nisso adota um apego, um casamento - impressiona mesmo pela entrega, pelo amor à causa. E quando há também o talento, minhas pequenas palavras calam... Aí, essas pessoas cativam e o seu fazer atrai agrados, ciúmes.

A atração nasce dos opostos? Devo muitas penitências aos bem-resolvidos. Apego-me a quase tudo. Ajo desordenadamente e sem amor único (apesar da exceção da regra). Vivo procurando novas paixões. A cada nova, digo-a eterna, aqui e ali, com a maior ênfase possível (a ânsia de conquistar e de agradar a si mesmo apega-se à mentira e perde o senso da razão, que já era mesmo muito tênue), e até com desfaçatez. A renovação de minhas incertezas ainda não me permitiu ser fiel como os dedicados, mas eu gostaria, se pudesse, se tentasse.

Os fiéis a uma causa única são quase imortais, em se considerando que há mortais dentre os apaixonados. Os demais são o oposto e o avesso, se aventuram por gostos, pessoas, lugares e coisas diferentes, por matizes variados em traçados já sólidos, pensados, articulados. Por isso, as pessoas de paixões eternas me atraem, e eu quisera ser sincero como elas, mas só prometo pensar em tentar, caso o tempo me dê ainda muitas voltas.

Para imitar a sinceridade, devo dizer que o mote deste texto foi encontrar um velho jurista, um sábio professor, formado há quase cinqüenta anos, e ainda expondo saberes e experiências com forte emoção e invejável disposição. Encontrei-o numa dessas festas de fim de ano, dias atrás. Com talento e lucidez, ele discorreu sobre vários temas, lembrou de sua formatura, quase completando meio século, e expressou várias alegrias. Senti a realização dele. Como eu há muito tinha vontade, revelei a ele meu desejo de ter sido seu aluno, o que não foi possível porque ele fazia, na ocasião, uma pós-graduação. Presenteei-o com um livro meu, fiz uma dedicatória tímida, mas de indisfarçável carinho. Sob o peso da idade da entrega, vi-o ir algum tempo depois. Mais tarde, antes de dormir, refleti sobre o que significaria aquela devoção para ele, e para tantos outros que entregam a vida toda a uma paixão bem definida.

Artesão da palavra, dentre veredas que passam das margens, é o Guimarães Rosa, que a gente percorre e não cansa. Jornalista, lembrei logo do nosso Zé Leite, arguto e tupiniquim incomparável, criador do taxista que poderia dar caronas para a prostituta apaixonada. Sobre o jurista, me faltou dizer para aquele velho professor que, apesar de não ter sido seu aluno, o considero um grande mestre. E que paixões eternas também me deixam emocionado, a ponto de não querer botar ponto final nas palavras. O mestre a que me refiro é o professor Jorge Araken, um apaixonado de eloquente sapiência.

Ao acordar, eu continuava impressionado com a capacidade dessas pessoas para se dedicar e para ser fiéis. Um amor como o do Gepeto, que deu luz ao Pinóquio. Esses amores me atiçavam um sentimento, dois, várias inquietações. E a vontade de, ao menos, poder dizer que esse viver é muito bonito. Escorre como o látex, mas é sólido como a borracha. Pensei e pensei. O ser bem-resolvido com a vida é realmente invejável. O ser indefinido e mutante é comum e não tem respostas, como eu. Nem tem causa, é cheio de perguntas íntimas. Tem o coração vagabundo de que fala Caetano. Às vezes, o coração leviano descrito por Paulinho da Viola, e quer guardar o mundo em si.

José Augusto Fontes é poeta, cronista e juiz de direito

2 comentários:

Unknown disse...

Altino, o José Augusto é admirável.

Ao homenagear o nosso professor ele nos faz relembrar os tempos maravilhosos da faculdade.

José Augusto que lindo o que escreveu para os que fazem o que de fato amam o que fazem (a verdadeira vocação):
"O ser bem-resolvido com a vida é realmente invejável" e
"poder dizer que esse viver é muito bonito" .

Pesquei um texto do livro Minutos de Sabedoria:

"Viva sua vida de acordo com as luzes que lhe chegam do Alto."

Seria isso?

José Augusto, meu amigo Guto, parabéns.

Anônimo disse...

O ser bem-resolvido com a vida é realmente invejável.