terça-feira, 12 de agosto de 2008

TAMBORES DE BEIJING

Marina Silva

O que dizem os tambores maravilhosos de Beijing, além do anúncio quadrienal do início da multicompetição que, mais do que qualquer outra, remete ao passado remoto da humanidade e a seus ideais de beleza, perfeição e força?

Eles nos dizem que nossas raízes ressignificadas em alta tecnologia trazem uma espécie de som rouco da história, de sentimento de continuidade, de que as coisas sempre estarão presentes no mundo, de forma renascida.

Sentados no sofá da sala, magnetizados pelo espetáculo ininterrupto de Beijing, nos sentimos herdeiros atávicos da Grécia antiga. Pulsa nos jogos olímpicos a memória melancólica de um todo chamado humanidade, como se um cristal tivesse se partido em algum momento em milhares de pedaços e, de tempos em tempos, os cacos se juntam e formam figuras perfeitas, lindas, coloridas, caleidoscópicas. E sempre nos reconhecemos nelas.

Por outro lado, sabemos que as olimpíadas não são apenas isso. São também um mega-evento internacional de oportunidades de negócio, desde o plano individual dos atletas, com seus esquemas de patrocínio, até o da geopolítica, das guerras sublimadas no quadro de medalhas, da tensão competitiva que produz tantos efeitos anti-olímpicos, dos quais o uso de substâncias proibidas é só a face mais triste.

E, mesmo assim, ainda são uma síntese fascinante, cheia de sentidos que desvendam o que somos, embalados pelos tambores, pelos corpos perfeitos, flexíveis, potentes e sincrônicos, pela arquitetura arrojada, pela harmonia apolínea de nossos heróis olímpicos, nos quais nos projetamos pela torcida e pela admiração.

Joseph Campbell, estudioso da mitologia universal, em seu livro "O herói de mil faces", diz que "o herói é o homem da submissão autoconquistada". É aquele que se obriga a poder quase nada, a renunciar a tudo para alcançar um único momento, mas que se faça eterno. Só ele saberá o quanto lhe custou. Para todos os demais, serão alguns segundos de encantamento, de leveza, de algo que pode parecer até sobrenatural.

Nas olimpíadas, os heróis e heroínas são os guerreiros e guerreiras de uma guerra às avessas. Enquanto para os confrontos mortais, como o que acontece entre a Rússia e a Geórgia, leva-se o pior do pior - as ferramentas de eliminar a vida -, nas olimpíadas quer-se provar que a humanidade é melhor do que parece ser e que somos feitos para coisas belas, plenas; que estamos sempre superando limites e nos completando em nossa enorme diversidade.

Talvez sem nos darmos conta, muitas vezes nos esquecemos de que há ali uma competição e simplesmente admiramos e nos emocionamos com a arte e a beleza encarnadas no esporte, seja de que país for. Deixamos de lado a lógica da nacionalidade e assumimos apenas o lugar da nossa condição humana. É a humanidade que está no palco das olimpíadas, com suas misérias e também com sua grandeza diante das dificuldades.

Nenhuma outra cidade seria tão apropriada para simbolizar a riqueza de sentimentos contraditórios que uma olimpíada moderna pode nos trazer. Beijing, com seu céu poluído e sua fúria desenvolvimentista, tem o papel de cérebro de uma China que é hoje o maior enigma global. Guarda ancestralidades tão marcantes e quer ser, a um só tempo, a vanguarda tecnológica, a fábrica do mundo e ter sob controle todas as variáveis sociais.

É do meio ambiente, antes do que da política, que parte o sinal de alarme. De todos os fatores que a China tentou planejar para ficar bem na foto das olimpíadas, só o ambiental mostrou-se incontrolável.

O recado é claro e vale para os anfitriões chineses e para as visitas, especialmente para os chefes de estado que por lá estiveram: precisamos, de nossos ancestrais, não somente da magia tribal dos tambores e da universalidade olímpica. Precisamos da mesma natureza que nos legaram e que estamos tratando tão mal.

Marina Silva é professora secundária de História, senadora pelo PT do Acre, ex-ministra do Meio Ambiente e colunista da Terra Magazine.

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