segunda-feira, 9 de junho de 2008

AS SANTAS HORAS DO DIA

Antonio Alves

Sou menino da província. Cresci numa cidade pequena, perdida nos confins da floresta amazônica –no dizer de um de seus cronistas, “a capital do fim do mundo”- e aprendi a gostar desse sentimento do ermo, do íntimo, do ignoto, esse tesouro oculto aos olhos do mundo. Vivi os tempos da distância e do sossego, em que o sentido da vida era uma verdade tão simples que estava ao alcance das crianças e o tempo era o eterno presente em que o avô que um dia havia sido neto caminhava de mãos dadas com seu neto que um dia seria avô –e tinham, ambos, o mesmo brilho eterno no olhar.

Havia o inverno, com o rio cheio pelas chuvas intermináveis, e o verão de praias iluminadas sob o infinito céu azul. E um dia com muitas horas: de acordar, de ir pra aula, de brincar, de almoçar, de dormir. Nessas horas infantis, pouco importava o relógio. E se alguma inusitada preocupação me levava a perguntar as horas, meu pai respondia com a velha brincadeira: “faltam dez minutos pra mais tarde”. Se eu insistia, variava: “faltam cinco minutos pra daqui a pouco” e ainda devolvia a pergunta: pra que você quer saber as horas?

Mas elas existiam, as horas, e eram marcadas pelos hábitos da província. Às dez da noite a luz piscava, avisando que a usina iria encerrar suas atividades e o fornecimento de energia elétrica seria interrompido, para retornar às quatro da tarde no dia seguinte, horário que mudou com a inauguração da usina nova e o fornecimento da energia 24 horas por dia. O sino da catedral chamava para a missa. A sineta da escola, que chamávamos de “campa”, anunciava o início da aula. Chegar depois de bater a campa era ter que voltar pra casa e explicar o atraso a uma mãe contrariada. O grito do leiteiro era pontual, às seis da manhã no início da rua, dois minutos em cada casa, onde o velho tocava o chapéu para dar bom dia, tirava o litro cheio da manta sobre o flanco do cavalo e colocava no lugar o litro vazio que um sonolento menino lhe entregava.

Mas ninguém nem nada marcava as horas tão certo quanto a Rádio Difusora, com as vozes infalíveis de seus locutores, o ritmo matinal do forró, as melodias para os aniversariantes logo depois das mensagens para o interior, as canções românticas ao luar. No final da tarde soavam os acordes da solene introdução de “O Guarani” e uma metálica e oficial voz do Brasil anunciava: “em Brasília, dezenove horas”. Era melhor apressar a brincadeira, começar o último tempo do jogo, fechar a caverna e dispersar a tropa, pois às seis horas convinha estar em casa, de banho tomado, pedindo a bênção a papai e mamãe.

Essas tais seis horas eram sagradas, “a hora do anjo”, pois marcavam o momento exato em que o mensageiro de Deus havia revelado à Virgem que ela haveria de ser mãe de um menino que salvaria o mundo. E enquanto o sol lançava seu último clarão no horizonte, o som da “Ave Maria” de Gounod enchia o ar da província e a vida de seus moradores com o mais legítimo frêmito religioso.

Não admira que esse menino, mesmo tendo se tornado um jovem rebelde e cheio de teorias revolucionárias, depois de adulto retornasse ao rebanho cristão do qual, em verdade, jamais saiu. Que buscasse a companhia de uma irmandade que canta “as santas horas do dia” e segue o calendário da lua. Que se orientasse pelas estrelas. Que rezasse, contrito, as velhas rezas entre velas, santos e promessas com que se pede chuva e saúde. Que balbuciasse, na língua do avô português, seu tímido amor e seu desejo de aconchego ao colo da avó índia.

Sim, toda a gente que viveu aquele tempo -em verdade um tempo de Deus na terra- é gente cristã legítima. Gente cheia de pecados, crimes e torpezas, de grandeza mesquinha e soberba miúda, traições e vinganças, avarezas e usuras, segredos guardados entre a alcova e o confessionário, ganância altas e invejas rasteiras, e a indisfarçável e transbordante luxúria nos olhares e nos gestos e toda a herança venérea da civilização e a tuberculose e tudo o mais que se possa lembrar ou imaginar, mas tudo, tudo mesmo, tudo tudo tudo envolto no imenso manto do perdão divino que se alcança na morte e se carrega para dentro da eternidade.

Menos as horas, que estas ficariam eternas sobre a terra, para todas as gerações futuras. O sol nasceria sempre às seis da manhã, com os pássaros. Estaria a pino no meio-dia, pois é no meio da jornada que o homem pisa na cabeça de sua sombra. Descansaria às seis da tarde, para que o ouro do dia cedesse o céu à prata da lua. E da meia-noite não se fala, pois que sua guarda não é segredo, é mistério, e as corujas sabem disso.

As horas seriam, per omnia saecula seculorum, os pontos de encontro entre a mãe natureza, ponderada e sábia, e seus filhos rebelados em lógica e civilização. As marcas rudimentares da enxada no solo, as sementes que os povos dos sertões carregam na capanga de couro para trocar com aquelas que os povos da floresta trazem no bisaco de algodão. A herança que deixaríamos aos meninos, para que crescessem e ensinassem aos seus filhos a pedir a bênção aos mais velhos.

Agora, que o mundo já se acaba e a província morre no olhar de meninos que envelheceram sem sabedoria, agora, que a vida é matéria plástica que se compra e se vende, agora, que os frutos brotam em prateleiras de supermercados e não tem sementes, agora, que novos cristãos enlouquecidos queimam a mãe em nome do pai, agora, que a impunidade torna o perdão desnecessário e ridículo, agora, que as palavras não tem significado e todos os números somam zero, agora já não há mais tempo sobre a terra.

Devo recusar ao mundo as poucas horas que guardei, para com elas, quem sabe, construir outra província, íntima e oculta, onde possam viver apenas os que, como eu, recusam o fim dos tempos. Nela haverá de novo um inverno de chuvas intermináveis e um verão de céu azul. Nela haverá um templo e na parede deste templo, de frente para a entrada, um antigo relógio marcará antigas horas com badaladas que serão as notas de uma música muito, muito antiga.

O cronista Antonio Alves escreve no blog O Espírito da Coisa.

Um comentário:

Socorro Craveiro disse...

Cumpade era assim mesmo. Eu tinha um tio que me respondia como teu pai. Afinal para que as crianças deveriam se preocupar com o tempo a não ser para usufruí-lo? Hoje as crianças ficam o dia inteiro sendo "bipadas" pelo celular para cumprir sua agenda diária.Afinal tempo é dinheiro.Uma pena que não nos perguntam. Mas a gente fala assim mesmo, né?
Abraços infinitos, Maria.