sexta-feira, 25 de abril de 2008

OS KAXINAWÁ DE FELIZARDO


A tese de doutorado "Os "Kaxinawá de Felizardo": "correrias", trabalho e "civilização" no Alto Juruá", do antropólogo Marcelo Manuel Piedrafita Iglesias, é o documento mais instigante que li nos últimos anos sobre o Acre. Foi apresentada em fevereiro ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Destacado colaborador deste blog, Marcelo Piedrafita teve seu trabalho aprovado com louvor ao obter o título de doutor em antropologia social.
Trata-se de uma alentada pesquisa, que se torna imprescindível para quem queira conhecer a verdadeira história do Acre. O texto da tese, com 481 páginas, é ilustrado por mapas e fotos inéditas.

A foto acima, por exemplo, é de Felizardo Avelino de Cerqueira, aos 40 anos de idade. Foi obtida pelo antropólogo do álbum da familia Cerqueira. No verso da foto, lê-se: "Offereço à Irmã e Amiga Gersina. Cruzeiro do Sul, 30-10-1926. Felizardo Cerqueira".

Ele nasceu em Vila Pedra Branca, no Ceará, a 29 de outubro de 1886. Com pouco mais de 17 anos, em março de 1904, acompanhado de uma turma de conterrâneos, deixou a cidade natal com destino ao Amazonas, passou por Belém e Manaus e desembarcou na confluência dos rios Envira e Juruá.

Naquele ano, trabalhou como seringueiro no rio Acuraua e na safra seguinte, de 1905, já como freguês de Ângelo Ferreira da Silva, começou a cortar seringa numa colocação de margem próximo ao sítio Lupuna, dividindo sua barraca com o seringueiro Francisco Gomes.

Em agosto de 1905, o ataque de cinco índios à sua colocação - seu companheiro em fuga foi alvejado por uma flecha, seus pertences foram roubados e sua casa incendiada - desencadearia uma seqüência de eventos que daria início, segundo Felizardo, à sua carreira como "catequista de índios".

No barracão, para onde Francisco foi trazido e salvo pelo tratamento prestado por Ângelo Ferreira, a imediata reação dos demais fregueses foi planejar uma "correria" - matança organizada de índios. Após refletir, dado o "risco de ser responsabilizado pela defesa que constitui dos índios", Felizardo proporia experimentar se era capaz de "entrar em contato" com os "selvagens". Sua reação, culminando com a ousada proposta, é assim justificada num relatório inédito que deixou sobre os anos vividos no Acre.

- Eu, que por diversas vezes, vi chegarem grupos de peruanos e brasileiros, trazendo consigo índias e meninos e contarem que lá ficaram inúmeros índios mortos, não me sentia bem com tremenda cena desumana. Sentia dentro de mim, não sei o que, uma compaixão pelos pobres dos prisioneiros das selvas que foram criados com tanta liberdade e em dado momento fugir de súbito da sua felicidade que outrora gozavam, para se ver prisioneiros e cativos de seus algozes, que sem compaixão jogavam-lhes nos mais brutais trabalhos.

Felizardo tinha por hábito marcar suas iniciais (FC) no braço de homens, mulheres e crianças por ele "amansados". Assim aconteceu com parte dos Kaxinawá e com outros índios que, enquanto Felizardo esteve em Revisão, ali chegaram, "pegos" em rondas da "polícia de fronteira" ou por circunstâncias de suas trajetórias pessoais.


Nesta foto, captada pelo antropólogo Terri Vale de Aquino na Terra Indígena Kaxinawá, aparece o braço do velho Regino Pereira, com a marca FC, de Felizardo Cerqueira. Uma única menção a essa prática é feita por Felizardo em seu relatório:

- Eu tinha o hábito de marcar todos os índios com as letras FC e o número de ordem que fosse amansando.

Marcelo Piedrafita revela que Felizardo dá indicações em seu relatório de que os Kaxinawá foram o grupo junto ao qual suas ações de "catequese" obtiveram resultados mais consolidados - apesar de reconhecer que "em caso algum me foi tão difícil a catequese quanto esta tribu". Ao contabilizar os resultados de seu trabalho como "catequista de índios", Felizardo diria:

- Todos os índios que foram mansos por mim, que são superior a três mil, deixei-os na mais perfeita "Liberdade". Não há prova concludente que desminta esta verdade".

Mas o antropólogo Marcelo Piedrafita observa:

- Na carta enviada ao deputado federal José Guiomard Santos em 1955, em que solicitava seu apoio junto ao governo federal para a obtenção de uma pensão, Felizardo, diferentemente, especifica ter "catequizado" "para mais de trezentos índios". Este número, cabe ressaltar, coincide com o total aproximado dos Kaxinawá que com ele permanecera após a diáspora no rio Envira, o acompanhara na mudança ao alto rio Tarauacá e com ele se estabeleceu e trabalhou no seringal Revisão.

Leia um trecho da tese de Marcelo Piedrafita. Os Kaxinawá acreditavam que Felizardo era possuidor de "poderes mágicos", que permitiam-lhe esconder-se sem deixar rastro, passar sem ser notado e não ser alvejado por armas de fogo, atributos que davam confiança aos Kaxinawá ao se engajarem com ele nas atividades da "polícia de fronteira". Clique em Um homem de "oração forte".

CLIQUE NAS FOTOS ABAIXO

Alto Rio Juruá - índios da tribo Poyanáwas, localizados na Vila Rondon, no rio Môa, em 1913


Alto Rio Juruá - índios da tribo Poyanáwa, localizados na Vila Rondon, no rio Môa, depois receber roupas, chapéus e brindes - 1913

Alto Rio Juruá - índios das tribos arara e poianáwa, reunidos em Cruzeiro do Sul - 1913. À direita, vêem-se, os coronéis Manoel Absolon Moreira e Mâncio Agostinho Rodrigues de Lima, respectivamente, "delegados de índios" dos rios Amoacas e Moa.
Alto Rio Juruá - índios da tribo arara reunidos em Cruzeiro do Sul - 1913
Alto Rio Juruá - índios das tribos jamináwa e amuáca, no rio Amoáca - 1913
Felizardo vivia com os índios kaxinawá em Revisão, no alto rio Jordão
O capitão-tenente Sadock e índios kaxinawá
Índios kaxinawá em Transwaal, no rio Jordão, afluente do rio Tarauacá, 1924

Índias no seringal Revisão

14 comentários:

Anônimo disse...

Gostei muito dessa historia , tem como eu comprar esse livro , caso tenha sido publicado.

Unknown disse...

Que interessante...vou procurar na scielo para ver se já tem algum artigo publicado.

Anônimo disse...

Muito interessante! Gostaria de ter acesso a tese. Minha avó materna, nascida em 1913, no seringal Sorocaba, na foz do Jordão. Encheu meu imaginário infantil contando histórias de índios e do Felizardo que "entoava os cabocos", fazendo-os dançar. Transval, Revisão, foz do Jordão. Nomes que me remetem a uma longínqua infância.

Anônimo disse...

Olá, parabéns, a matéria ficou muito boa... fiquei interessadíssimo em ler a tese... por favor, me informe como posso obtê-la.

Abraços

Eduardo A. C.

Unknown disse...

Interessante. Preciso ler. Como poderei contatar o autor?

Unknown disse...

ola amigo...meu nome é ricardo de campos cerqueira neto do seu felizardo , filho de jose de souza cerqueira unico filho homem do meu avó...gostei muito de saber que você escreveu um livro sobre ele...vou ver se consigo o livro... se quiser entrar em contato meu e-mail é:ricardoccerqueira@hotmail.com...um abração

Eduardo Cerqueiraira disse...

Altino Machado.
É simplesmente fantastico poder ver a história de um brasileiro que realmente deu a vida por nosso país, deixando os próprios filhos"afastados" por uma causa tão nobre.E sabendo que ele é nosso parente direto fico mais feliz ainda....Sou neto do Srº Felizardo Avelino Cerqueira pai de José de Souza Cerqueira, solicito encarecidamente a forma de adquirir esta biografia, pois seu filho José Cerqueira quer muito saber mais da vida e legado de seu pai;
se puder fornecer meios de comunicação ficaremos grato.
atenciosamente: Eduardo de Campos Cerqueira cel(21) 9429-9412, e-mail: eduardocerqueirarj@gmail.com

Eduardo Cerqueiraira disse...

Altino Machado.
É simplesmente fantastico poder ver a história de um brasileiro que realmente deu a vida por nosso país, deixando os próprios filhos"afastados" por uma causa tão nobre.E sabendo que ele é nosso parente direto fico mais feliz ainda....Sou neto do Srº Felizardo Avelino Cerqueira pai de José de Souza Cerqueira, solicito encarecidamente a forma de adquirir esta biografia, pois seu filho José Cerqueira quer muito saber mais da vida e legado de seu pai;
se puder fornecer meios de comunicação ficaremos grato.
atenciosamente: Eduardo de Campos Cerqueira cel(21) 9429-9412, e-mail: eduardocerqueirarj@gmail.com

Alexandre Cerqueira disse...

Boa noite, meu nome é Alexandre Rodrigo de Amorim Cerqueira, sou filho de Aldemir Cerqueira, q foi filho de Felizardo com Antonia de Souza Cerqueira, mulher na qual foi casado oficialmente e q eu saiba a única a carregar o sobrenome Cerqueira, gostaria mto entrar em contato com vc para saber mais sobre a vida de Felizardo, e quem sabe tbm poder ajuda-lo em seu estudo.Moro no Rio de Janeiro, caso interessar deixo meu e-mail p contato. morcegueti@hotmail.com , Grato.

Unknown disse...

Bom dia, meu nome é Andréa Regina de Amorim Cerqueira, sou irmã de Alexandre (que postou acima). Ha algumas semanas fui contatada por e-mail por Renato Brito que me "achou" numa pesquisa on line. Através dele soube desta tese sobre meu avô, Felizardo. Parabéns pelo trabalho e MUITO obrigada. Vocês nao imaginam como é bom saber nossas origens.
Um abraço carinhoso aos responsaveis.
Andréa

Unknown disse...

Esqueci de deixar meu contato: theandie@hotmail.com
Obrigada, Andréa.

Unknown disse...

Marcelo, estou contente e agradecida pela tese defendida por você, tendo como tema a biografia do meu avô. Eu me chamo Edna cerqueira lima, filha de Dídimo Avelino Cerqueira e neta de Felizardo Avelino cerqueira.Meu pai Dídimo, hoje com 91 anos de idade, Meu avô Felizardo seus primeiros filhos que foram três,incluindo meu pai, com minha vó Raimunda, a índia companheira de suas andanças.Hoje ele contas muitas histórias do meu avô, onde eu confirmei várias na pesquisa.Eu admiro muito meu avô, pela sua inteligência, bravura, coragem e pelo seu caráter de ter se doado de corpo e alma a sua vida toda em benefício dos índios, que ele os amavam.Marcelo, eu gostaria de ter acesso a sua tese, para saber mais sobre a vida do meu avô.eu fiquei emocionada com este presente, o meu obrigadão! de coração! E que Deus te proteja.O meu obrigadão também em especial para o Altino que publicou em seu blogger grandioso em suas reportagens.

Unknown disse...

continuando: edna cerqueira lima,faço votos que seja atendido o meu pedido, para contato ednalima2007@hotmail.com nos moramos em Porto velho - Ro.

Unknown disse...

vendo os comentarios aqui no blog já percebo que meu avó era um homem que muito viajou e varias familias construiu...

meu pai nunca me contou sobre o passado do pai dele,e quando soube do livro,me contou varias passagens que não imaginava que ele soubesse,como o caso dele ter tido outras familias...

mas como minha avô tinha uma pensão no nome dele,eu acho que ela foi casada "no papel" com meu avó...e meu pai se lembra muito bem que minha avó não deixava meu avô levar ele pra longe,pois poderia nunca mais voltar...pois meu avó não tinha residencia fixa...

gostei muito de saber do lado humano do meu avó,pois pelo que dá pra entender ele nunca compactuou com as matanças dos indios...que eram algo "normal" naquela época..

um grande abraço a todos