quinta-feira, 24 de abril de 2008

CARTA DE AMOR AO ACRE

Veronica Barbosa


Gostaria de ter o poder da ubiqüidade para conversar com cada brasileiro e contar para cada um, individualmente, com o sorriso que vai nos lábios e na alma, típico dos acreanos - que o Acre de fato existe, ao contrário do que eventualmente é alardeado em vários ambientes no país.


Tive a sorte de fazer esta constatação por ocasião da inauguração da primeira fábrica de preservativos masculinos com látex de seringal nativo no mundo, em Xapuri, há cerca de duas semanas. Acompanhada de um fotógrafo e amigo britânico, passei 10 dias entre Rio Branco, Xapuri e recantos da “vida seringueira”, em minha primeira visita ao Norte do país.

Falo em “vida seringueira” porque não me refiro ao seringueiro nem ao seringal, mas à harmoniosa integração entre os dois que este projeto veio recuperar. Para quem não sabe, a figura do seringueiro quase desapareceu com o declínio da atividade extrativista voltada para a produção de borracha na região ao longo de décadas, em decorrência da competição da produção em larga escala em outros continentes, da competição (desleal e descontrolada) com a atividade pecuária na região a partir da década de 70, e do desenvolvimento da borracha sintética, além da ausência de políticas públicas que garantissem a preservação da floresta.


Reativar e reorganizar a atividade extrativista, dentro de uma lógica de desenvolvimento econômico sustentável (que inclui o desenvolvimento industrial do próprio Estado), respaldada por políticas públicas em níveis estadual e federal, envolvendo esferas como meio-ambiente, saúde e ciência e tecnologia, foi tarefa complexa e meticulosa, que exigiu competências técnicas e uma orquestração política sem par no país. Por várias razões, projeto legítimo e audacioso como este só poderia ter se concretizado nesse Estado de cuja existência, lamentavelmente, ainda se duvida.

Porque foi no Acre que se cunhou a palavra florestania. O neologismo, que soa como jargão técnico ou mantra de ecologista, está de fato, na boca dos acreanos e de quem lá vive, da capital Rio Branco às colocações de seringueiros nos recônditos igarapés. Segundo a definição do jornalista acreano Antônio Alves, “a florestania é a tentativa de chamar a atenção para o fato de que a humanidade não é o centro, mas sim parte integrante e dependente da natureza”.


Considerando-se a freqüência e propriedade com que é pronunciada, a palavra cuja autoria é atribuída equivocadamente ao ex-governador Jorge Viana já provou que não veio apenas enriquecer a língua portuguesa, mas conferir um sentido holístico à relação entre o homem e a floresta, desvinculando-a da visão utilitarista predominante.

Porque foi no Acre que se consolidou, através da figura de Chico Mendes e do seu inegável legado ambientalista, a noção de que de nada importa a promoção do valor econômico sem o valor social agregado. Esta noção reflete-se nas palavras de José Maria Barbosa de Aquino, presidente do Conselho Nacional dos Seringueiros, ao comentar o mérito do novo empreendimento de Xapuri.

- A tecnologia tem que estar a serviço do pequeno, sem intermediários.


Porque no Acre pode-se observar hoje um fenômeno raro no Brasil, de harmonização das políticas em níveis estadual e federal, calcada em um grupo politico que combina idealismo a um forte senso de pragmatismo. Esta sinergia ideológica (emblematizada pela Frante Popular do Acre) se traduz, por exemplo, em políticas de estímulo ao “neo-extrativismo” no Estado. Ao contrário do modelo de extrativismo em vigor até a década de 70, que não valorizava o seringueiro e se mostrou inviável, este novo modelo tem como desafio mostrar a viabilidade econômica da floresta, para benefício direto do extrativista.

Porque no Acre existe um Secretário Estadual de Floresta que vai até a floresta. O engenheiro florestal Carlos "Resende" Ovídio Duarte vai aos igarapés para falar a cada seringueiro sobre as técnicas de manejo florestal e sobre as potencialidades da atividade econômica florestal comprometida com a sustentabilidade, por meio de programas de treinamento estruturados em todo o Estado, oportunidade que aproveita para aprender os desafios reais do dia-a-dia.

Porque no Acre tem gente com conhecimento técnico e capacidade de articulação necessários para melhor difundir o valor econômico da floresta, desmistificando a idéia de que para preservar é preciso deixá-la intacta, inexplorada.


- Enquanto não for compreendido e difundido o valor da floresta como commodity, através do melhor conhecimento de todas as suas potencialidades de exploração econômica sustentável, será muito difícil preservá-la - afirma o secretário.

Para a exploração economicamente viável da floresta, sem colocar em risco o meio-ambiente, o secretário ressalta que também é necessário tempo e investimento em pesquisa e produção de conhecimento.

- Não se chegou ao nível tecnológico de desenvolvimento da atividade agropecuária no país sem que muito investimento tenha sido feito - assinala Resende.

Porque o Acre produziu figuras políticas cujas histórias de vida falam por si, como a senadora Marina Silva, ministra do Meio Ambiente, ex-vereadora e ex-deputada estadual, filha de seringueiro, alfabetizada aos 18 anos de idade. E por muitas outras razões.


O último número da edição especial brasileira do Le Monde Diplomatique traz a preocupação com a Amazônia em sua matéria de capa: “Agir enquanto é Tempo”. Um artigo assinado pela ONG Fase mostra na mesma edição como é complexo o desafio da preservação da maior floresta do mundo, aponta os equívocos dos grandes projetos econômicos para a região amazônica que não se quer repetir, e os passos a seguir.


Fica a impressão: enquanto o Brasil não tomar conhecimento da existência do Acre e não propagar para o próprio país as experiências e lições tiradas dali, vai ser muito difícil mostrar para o mundo que tem a mínima competência necessária para cuidar da Amazônia.

Não se sabe ainda quando a fábrica de preservativos de Xapuri obterá a licença da Agência Nacional de Vigilância Sanitária para poder efetivamente fornecer camisinhas para distribuição nacional pelo Ministério da Saúde. Já se sabe que alguns seringueiros no Estado contam com até 300 cabeças de gado dentro de reserva extrativista. Mas no mundo imperfeito com mais tons de cinza do que preto e branco, nada disso pode abafar o sopro de esperança que estes 10 dias no Acre me proporcionaram.


Veronica Barbosa é jornalista e fotógrafa carioca. Enviou o artigo com observação a seguir: "Fiquei muito apaixonada pelo Acre, então me dê um desconto". É mais uma pessoa a se encantar com essa terra positivamente estranha. Tá dado o desconto, Veronica. Grato pela colaboração.

5 comentários:

Válber Lima disse...

Belas fotos, belo texto. É sempre bom o olhar estrangeiro do que nos é familiar. Viajei no trabalho até Xapuri.

Anônimo disse...

Se a popula�o brasileira, n�s visse, n�s respeitasse, e de fato defendesse profundamente que o Acre existe.
Que temos uma floresta a ser preservada para o bem da humanidade.
Que chifre n�o e mais importante do que pau, igarap�s, rios, peixes, jabuti, paca tatu, cutia e macaco.
Que unido � for�a de toda a popula�o brasileira igual a n�s acreanos, que temos orgulho de bater do peito e disse em qualquer lugar do mundo que somos acreanos, por mais que um ignorante nos diga que o Acre n�o existe.
Assim o conceito de florestania, ser� compreendido e defendido por todos, que sempre vamos depender da natureza para vivermos.

Ver�nica, seja sempre bem vinda ao nosso a Acre.


Leila

Anônimo disse...

Lindas fotos Veronica, sua sensibilidade continua delicada e sagaz como sempre... saudade dos nossos trabalhos de grupo na ECO!

Anônimo disse...

Verônica você conseguiu traduzir muito bem o que consegui sentir em minha visita ao Acre de apenas 2 dias, quando fui conhecer a experiência da Secretaria Estadual de Meio Ambiente (SEMA) no Mapeamento de àreas de Risco de Acidentes por produtos químicos.

Trabalho no Órgão Estadual de Meio Ambiente de Pernambuco(CPRH)e na ida para o Acre fiz uma conexão no Rio e visitei a FEEMA para ver a experiência deles também no mapeamento.Entretanto, me senti muito melhor em Rio Branco apesar de ter sido também muito bem recebida na FEEMA.

Infelizmente não consigo escrever minhas sensações e experiências como você, mas consigo me identificar com o que você escreveu.

Rio Branco está de parabéns com o que conseguiu e por onde passo divulgo que a viagem mexeu comigo e me sinto na obrigação de divulgar e de tentar buscar este Brasil que está dando certo para o nosso estado.
Parabéns a todos.
Evelina, Recife

Anônimo disse...

Sou acreana e fico muito feliz com este reconhecimento merecido desta terra tão diferente e promissora, que infelizmente poucos conhecem.

Mas, com estas reportagens, logo saberão que o nosso pedacinho no Norte do país tem muito a acrescentar ao Brasil!

Mariana Anção de Almeida