terça-feira, 15 de janeiro de 2008

VAI DIABO, VAI LOGO

Leila Jalul

"Já vão tarde
fora de hora
calças rasgadas
e bundas de fora"

Esta e outras trovinhas foram muito utilizadas na minha infância. Era recitada aos berros quando a meninada, após horas de brincadeiras, resolvia ir para casa, com medo de apanhar, justo na hora que alguém estava prestes a ganhar uma partida de vôlei de charco, ou de baleado, no campinho da igreja.

Bando de medrosos! Mais vale uma lambada nas costas do que interromper o melhor da festa. Minha preferida não era aquela. Sempre fui mais língua suja. Era esta:

"Vai diabo,
vai logo
vai cagar no mato
e limpar o toba
com o salto do teu sapato"

Tudo para contar um quadro "imperdível", um tal "De volta para a minha terra", no programa Domingo Legal, do Gugu Liberato.

De fachada, parece um bonito gesto do menino louro, cria do distinto Senor Abravanel. Afinal, quem não deveria admirar e enaltecer o carinho com que o nosso delicado herói trata os menos afortunados?

São os arigós da Bahia, das Alagoas, do Delta do Parnaíba e de todo o resto da região do agreste e dos alagados, que, por falta de oportunidade e/ou capacidade para o trabalho, ou por outras razões, não decolaram na capital paulista.

São o pai, a mãe e uma reca de crianças, normalmente morando em periferias e lixões, magoados com a sorte madrasta, geladeiras e prateleiras zeradas, desempregados e sem um tostão furado para empreender a viagem de volta. E voltam, felizes. Voltam para o outro lado do nada.

Lá no outro lado do nada, uma mãe sofrida lembra, entre uma lágrima e outra, os filhos que foram e não podem voltar. E se voltarem voltarão com menos do que quando partiram.

O quadro já é bem antigo. Tem longos minutos de duração. Acontece com um matiz de estardalhaço, bem próprio dos amantes da filantropia com direito a reconhecimento público.

Algumas viagens de volta são de avião. Outras, de ônibus ou cata-corno, como alguns nordestinos classificam o transporte coletivo rodoviário. O jornalista vai junto, mostrando as belezas das áreas dos cantões secos, capins queimados, casas de taipa. Logo atrás, um caminhão da Granero vem com móveis novos, de legítimo aglomerado, e alguns eletrodomésticos básicos.

Noutro carro, um ano de cesta básica, alguns produtos da Cazo ou de outro anunciante, para que a mulher possa ser revendedora e, enfim, para a garotada, a linha dos brinquedos do nosso bom samaritano. Caramba! Já ia esquecendo: tem também um envelopinho com uns trocados dentro, para, dependendo do mercado local, o chefe da família possa iniciar um novo negócio na cidade, vila, roça etc.

O processo de deportação (ou seria desova?) é completo.

Um bom antropólogo e um não menos bom sociólogo saberiam bem explicar esse retorno ao ponto de partida que, nos últimos anos, por baixo, por baixo, já retirou das ruas paulistanas pelo menos uns 600, 800 cabras da peste inservíveis ou improdutivos. Não sei como o bom ariano trata ou pensa dessa gente simples. Uma coisa eu sei: educado como ele só, jamais recitaria as minhas trovinhas.

Mas a musiquinha que toca ao final do quadro é cretina e serve de alerta aos que ousem migrar para a paulicéia desvairada, assim como quem diz: vem quem quer. Falta de aviso, não é.

"De que me adianta viver na cidade
Se a felicidade não me acompanhar
Adeus, paulistinha do meu coração
Lá pro meu sertão eu quero voltar".

O busilis da questão não está no ter ou não ter gestos de solidariedade. Nem no se fico ou se vou. Gostaria de saber das intenções.

As estatísticas mostram que não é nordestina a maioria da população carcerária. E mais: São Paulo tem a maior colônia japonesa fora do japão, a máfia chinesa anda por lá, bolivianos escravizados à luz do dia, chilenos, coreanos, israelenses, turcos, peruanos, italianos, portugueses, poloneses, libaneses, alemães, ucranianos, virginianos, skinheads e punks, catarinenses, porto-alegrenses e paranaenses, aos rodos. Muitos estrangeiros ilegais e nenhum deles tem um programa especial que se intitule "De volta para a minha terra".

Se não for perguntar demais, quem paga essa conta? Quem estimula essa desagregação?

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