terça-feira, 22 de maio de 2007

AVIS RARA

O homem que catalogou mais de 2 mil pássaros brasileiros e foi pioneiro na gravação dos piados deixa seu canto: plante árvores frutíferas que atraiam mais aves para viver perto da gente

Eduardo Petta

Quando menino, ele passava os fins de semana pesquisando a vida dos pássaros do interior de São Paulo. “Sonhava com a Amazônia, o Pantanal, as aves que lá habitavam.” Nas poucas festas da turma a que comparecia dava vexames, levando cobrinhas-d’água no bolso ou soltando sapos no meio do salão. Seu olhar era para o alto, para as árvores e para os céus. Onde viviam os pássaros. “Queria ser um deles.”

O menino que queria ter asas hoje é um senhor paulistano de 76 anos, 1,90 metro, com cara de general, jeito de empresário e sotaque dinamarquês, que me recebe em seu estúdio no bairro do Morumbi. Já havia lido um livro seu para identificar e ganhar intimidade com as aves que vivem rondando minha casa. Maravilhado, quis saber qual era a espécie de homem que havia catalogado pela primeira vez 2 mil pássaros brasileiros.

Antes de sentar, Johan Dalgas Frisch me convida à varanda, aponta para as aves que se alimentam em seu quintal e comenta. “Quando nasci, em 1930, havia 200 espécies em São Paulo. Em 1960, a cidade virou uma selva de pedra e o número caiu para seis. Fiquei alarmado. Chamei alguns jornalistas e iniciamos uma campanha nas rádios e jornais para que os paulistanos plantassem árvores frutíferas e atraíssem os pássaros de volta. Hoje existem cerca de 100 espécies na cidade. É o lugar que conheço que mais tem sabiá”, diz.

O início dessa relação de amor com os pássaros começou de forma esquisita. Quando tinha 10 anos, Dalgas matou uma ave a estilingada e levou para seu pai Svend ver. “Meu pai era um grande desenhista, amigo de Pablo Picasso, que freqüentou a faculdade de belas-artes em Paris. Ele me disse: ‘Vamos imortalizá-lo. Nunca mate um igual’. E assim começou nossa história: eu capturava os pássaros, meu pai desenhava e me ajudava a catalogar. Aos poucos fui aprendendo a catalogar sozinho.” Era praxe entre ornitólogos e biólogos matar um exemplar para catalogar as espécies. Mas não demorou muito para Dalgas aposentar o estilingue e começar a curtir os pássaros de forma mais suave: gravando seus cantos. Quando chegou à idade de ir para a faculdade, quis ser ornitólogo. “Mas naquela época era preciso estudar fora e pagar caro.” Dalgas foi estudar engenharia no Mackenzie e virou “passarinheiro” nas horas vagas.

Sucesso nas paradas


Passarinheiro é o jargão popular do meio para falar sobre os observadores e apaixonados por pássaros que não têm formação de ornitólogo. “Acordava de madrugada para gravar na represa Guarapiranga e sonhava em fazer o primeiro disco com o canto dos pássaros brasileiros”, diz Dalgas. Sonho ameaçado em 1962, quando um famoso ornitólogo norte-americano chegou ao Brasil disposto a fazer o trabalho.

Usando seu conhecimento de engenharia, Dalgas bolou uma engenhoca parecida com uma parabólica acoplada a um gravador, inventou uma desculpa no emprego e se mandou Brasil afora. Na volta, ficou sabendo que a pomposa expedição estrangeira havia sido um fracasso. Já sua parabólica foi camarada: 90% de fidelidade nos sons gravados.

Com a coletânea debaixo do braço, Dalgas demorou para achar uma gravadora interessada. Quando encontrou uma, ainda teve que pagar do bolso os primeiros 500 LPs. Pagou e comemorou. Ele era o pioneiro. Mas o disco não vingava. O que fazer?

O passarinheiro então recorreu a uma amiga jornalista que iria cobrir o encontro do presidente João Goulart com o presidente norte-americano John Kennedy. Pediu que ela tentasse entregar o disco de presente ao ianque. Aproveitando-se do atraso de Jango, a jornalista fez o serviço. Quando o presidente brasileiro chegou, o aperto de mãos fotografado por toda a mídia foi para as bancas no dia seguinte com a manchete: “Kennedy agradece a Jango o disco de aves brasileiras que recebeu”.

O disco decolou. Aclamado pela BBC de Londres, passou 18 semanas em primeiro na lista dos mais vendidos. Entre tantas cartas de congratulações, até o papa João XXIII mandou sua bênção. E ela seria essencial na empreitada seguinte: gravar o inédito canto do uirapuru.

“Conhece o uirapuru?”, pergunta.

Dalgas levanta, vai até o computador “último tipo” sem fios e mostra a foto da ave no blog da minissérie global Amazônia, de Glória Perez. “Seu canto foi ao ar ontem”, diz. “De todos os que ouvi, foi o mais belo e o mais difícil de gravar.” Também, pudera, o pássaro só canta 15 dias por ano, durante a confecção de seu ninho, de cinco a dez minutos por dia, pela manhã.

Para consegui-lo, Dalgas rodou a Amazônia. Trilhou a inacabada Belém-Brasília, foi à ilha de Marajó, percorreu a serra do Navio, no Amapá, subiu o rio Negro até a divisa com a Venezuela. “E nada do danado”, diz. Finalmente, uma informação de paradeiro no seringal Bagaço, no Acre. Dalgas voou para Rio Branco, entrou decidido na selva na companhia de um índio e dormiu debaixo de um temporal. Na manhã seguinte, ao raiar do dia, o índio lhe disse: o pássaro cantou. “Fiquei procurando-o desesperadamente, quando uma avezinha menor que um tico-tico pousou em minha antena. Tentei afastá-la com a mão, mas o índio me disse: ‘É o uirapuru’. Aí, foi só apertar o botão.”

Símbolo de sorte e amor, reza a crença que quando o uirapuru canta as outras aves silenciam. Quem ouvir seu canto e fizer um pedido terá seu desejo realizado. Dalgas fez dois. O primeiro, rapidamente atendido, foi o nascimento do filho Christian – que hoje faz as fotos de seus livros. O segundo era mais complicado. Um desejo que brotara durante a viagem pela Amazônia: “Preservar para sempre as montanhas do Tumucumaque (região na fronteira do Amapá com as Guianas), o lugar que mais me impressionou pela biodiversidade e beleza das paisagens”, diz.

Mas Dalgas não é do tipo que sonha e espera cair do céu. Bateu na porta do poderoso jornalista Assis Chateaubriand e ganhou sua simpatia. Chatô mexeu os pauzinhos, contatou o americano Nelson Rockfeller e, juntos, foram à Inglaterra, onde convenceram o príncipe Philip, marido da rainha Elizabeth, e o príncipe Bernard, da Holanda. De volta ao Brasil, nova romaria. Rogério Marinho, Amador Aguiar, Moreira Salles, Omar Fontana... A lista de apoio ficou tão forte que, ao recebê-la, o então presidente Costa e Silva, não teve dúvidas: assinou a papelada. Era julho de 1968, e o Parque Nacional Indígena do Tumucumaque estava decretado. Sonho que ficou completo em 2002, quando a área virou Parque Nacional Montanhas do Tumucumaque. O uirapuru dera sorte.

O último vôo


O senhor dos pássaros hoje dirige uma empresa especializada em despoluir água e ar. “Só a tecnologia pode salvar a natureza. Mas tem que ter luta”, diz. Esse sangue guerreiro ele credita aos ancestrais vikings. “Meu bisavô foi herói na Dinamarca. Reflorestou uma imensa área devastada que hoje é a floresta da Jutlândia.” Ao longo da vida, Dalgas venceu outras batalhas, como decretar o sabiá-laranjeira ave símbolo do Brasil, uma justa homenagem à ave que inspirou Gonçalves Dias, Tom Jobim, Chico Buarque. “Fiz tudo para mostrar ao mundo que as aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá.” Patriotismo que o fez deixar de ganhar muitos dólares ao recusar uma oferta de Walt Disney por suas gravações. “Ele não queria dar os créditos para as aves brasileiras”, recorda.

Depois de catalogar 2 mil pássaros e gravar quase mil, Dalgas diz que tudo que aprendeu na vida se resume num único canto: “Plantem árvores que atraiam os pássaros, que lhes dêem abrigo e alimento. Temos que trazer os pássaros para viver perto da gente. O trinar das aves tem o dom de elevar a alma e abrir as mentes para o amor”.

Se fosse um pássaro, queria ser o falcão-peregrino, “a ave de vôo mais perfeito”, que migra todos os anos do Alasca até a Terra do Fogo. “Mas é muita pretensão minha, né?”, diz. Antes que eu responda, Dalgas levanta, sacode o relógio e encerra a entrevista. Desce pelas escadas voando, entra no carro e desaparece. Breve como um passarinho.

Eduardo Petta é da revista Vida Simples, da editora Abril.

Nenhum comentário: