segunda-feira, 16 de abril de 2007

SUL METIDO A BESTA

Amigo Altino,

Este artigo sairia num jornalão do Sul, que não seria o Jornal do Brasil. Para não jogar mais lenha na fogueira, deixei de fazê-lo. Em deferência ao status de seu blog e à nossa amizade, em querendo, publique-o.

Edílson Martins

A minissérie televisiva “De Galvez a Chico Mendes“, ora em exibição pela TV Globo, abre, ou poderia abrir, um interessante leque de reflexões e mesmo resgate de nossa história. Até porque não faz mal a ninguém rever seu passado, ainda mais quando edificante. Vamos supor, apenas uma hipótese, que esse folhetim não seja lá nenhuma brastemp, empreenda esse resgate de forma insuficiente, atropelando fatos históricos, pouco importa.

Há como atenuante a convicção de que o objetivo de um folhetim não é resgatar História, com H maiúsculo, produzir tese acadêmica, pontificar didatismo, senão entretenimento. No caso é uma homenagem de uma filha querida, autora da minissérie – que fique registrada nossa deferência - à memória de um livro do pai amado. Por sinal meu mestre, e que Mestre, nos idos do Segundo Grau. Livro, com todo respeito, que também não é nenhuma brastemp.

Mas registremos o mérito da Globo em bancar tão delicado projeto, assim como o do Governo do Acre, que certamente fez o possível e o impossível para viabilizar tamanha ousadia. Amazônia e seu povo não costumam sensibilizar patrocinadores privados do sul maravilha, nem mesmo a Lei Rouanet, em projetos dessa natureza.

Bolívia, pobre Bolívia...!

E, no entanto, essa é uma das páginas – ciclo da borracha - mais dramáticas da história brasileira, desde a descoberta. Descoberta vai aqui como palavrão, de tão injusta e descabida. Tanto Galvez, espanhol que infernizou a vida da nascente República brasileira, como Chico Mendes, doce e valente seringueiro, dos tempos atuais, são filhos de uma mesma vertente: a diáspora do deslocamento de 500 mil nordestinos em direção à Amazônia, e a anexação do atual estado do Acre à nação brasileira. Essas terras pertenciam, queiramos ou não, à Bolívia e ao Peru.

Vamos aos fatos. No início da segunda metade do século 19, finalmente se incorpora o enxofre ao látex, matéria-prima extraída da seringueira, que praticamente só existia no vale do rio Amazonas. Sem ela a história da revolução industrial, que tinha como sede a poderosa Inglaterra, o Império da vez, certamente seria outra. Pois bem: os anos de 1877/1879 produzem no Nordeste a maior e mais terrível estiagem de que se tem notícia. Melhor dizendo; seca pai d´égua.

O historiador Marco Antônio Vila, no livro “Vida e Morte no Sertão”, obra notável pela seriedade e pesquisa, estima pelo menos 2,8 milhões de retirantes, de quase todos os estados do Nordeste, vítimas dessa tragédia. Não custa lembrar que a capital paulista, no início do século 19, tinha pouco mais de 6 mil habitantes. Vejam, portanto, o tamanho do estrago dessa estiagem.

Estratégia romana...

A indústria canavieira – sempre ela – pernambucana tirou partido generoso, já que foi o período em que a produção bateu recordes, com mão-de-obra praticamente de graça desses exércitos famintos, e ainda de lambuja vendeu seus escravos de verdade para o eixo São Paulo/Minas/Rio. Foi uma festa. Estamos falando das décadas de 70,80 do século 19.

Desse total de retirantes, meio milhão morreu de fome, e parte do que sobrou foi para a Amazônia, especialmente essa região chamada hoje estado do Acre. Ali rolava uma luta de classes e de etnias, ali se disputava a apropriação de uma matéria-prima estratégica para o futuro e o presente de toda a Europa. Os seringalistas – donos dos grandes seringais, latifundiários – competentemente lançaram os nordestinos foragidos da seca contra a população milenar – índios - que ali vivia.

Não eram modelos de informação histórica, esses coronéis de barranco, mas deviam conhecer, por intuição, a estratégia do Império romano: oprimido contra oprimido. Mais uma vez a pólvora contra a borduna, o arco e a flecha. Foi uma barbada. Exterminar populações primitivas, e o que sobrar, subjugar. Esse tem sido o bordão histórico das chamadas frentes civilizatórias, frentes agrícolas: exterminar, e o que sobrar, subjugar. Até hoje é mais ou menos assim, e a Amazônia não nos deixa mentir.

A mídia da época!

Mas vejamos o que dizia a brava mídia escrita da época. O jornal O Monitor, de 3/01/1878 de Salvador, relatava; “as estradas estão juncadas de cadáveres em estado de putrefação e sendo pastos de cães e urubus.” Um outro jornal, O Ceará, do estado vizinho, no mês seguinte, fevereiro, revelou que “somente no município de Aracati, morriam diariamente cem retirantes”.

Pois bem; Galvez e Chico Mendes procedem desse processo; o deslocamento periódico e histórico de milhares de retirantes. Hoje podemos chamá-los de bóias-frias, excluídos, cortadores de cana. Mudam apenas os nomes, mas é a mesma diáspora histórica. A cana-de-açúcar, que devolveu São Paulo a uma economia agrária, é a matéria-prima do xodó do atual governo brasileiro: o biodisel. O estado paulista, digo o seu interior, virou um grande canavial. Não demora, quem sabe, vamos chorar todos estes empregos, esta multiplicação de renda, estes feitos heróicos.

A cana-de-açúcar da Amazônia, no momento, é a plantação de soja. Já está presente no Sul do Amazonas, e como dói visita-las, já ocupa o Sul do Pará e Rondônia, e o Acre não se sabe até quando resistirá. Vale lembrar que essa cultura, da soja, é, infinitamente, mais daninha que a de cana-de-açúcar.

Foto na parede!

Por razão simples. Primeiro se derruba a mata primária, e esse processo, por óbvio, não é novidade para ninguém. Depois se queima toda a mata caída, que fica sem vida, sem cor, sem pássaros, sem ninhos, sem fontes de água, sem mata ciliar. Assistir como venho fazendo, nas últimas quatro décadas a esses crimes, crimes impunes, como dói.

Concluído esse processo vêm as máquinas, poderosas, abrangentes, arrogantes, retirando toda e qualquer forma de vida, recolhendo o que sobrou de raízes, micro-organismos, reduzindo tudo a zero. Aí então podemos plantar a soja, orgulho de nossas exportações, cujos empresários esperam urgentemente que o presidente Lula faça mais um reparo histórico e reconheça, também neles, verdadeiros heróis.

Se os usineiros o são, por que não eles também? E nós temos um Presidente dotado de profundo sentimento de justiça, invejável autocrítica, que o leva, sem pejo, a mudar rapidamente de opinião com a maior humildade. Aguardemos.

Tudo isso para repetir: “De Galvez a Chico Mendes” poderia, quem sabe, com sua poderosa visibilidade, sem prejuízo de sua natureza de entretenimento, trazer alguns subsídios para nos informar mais, iluminar nossa memória, nossa cidadania. Até a novela das 8 tem feito isso. E não haveria nenhum risco de sisudez, de academicismo.

Encontros casuais!

Em outubro de 1905, viajando no navio Rio Branco - o nosso Barão já tinha ficado famoso - no rio Purus, houve um encontro casual entre Euclides da Cunha e Plácido de Castro, esse sim, o verdadeiro herói da Revolução acreana. Euclides vivia a glória da série jornalística sobre os Sertões, e quem sabe imaginava novamente ser o Homero do feito dos acreanos.

Eram viagens demoradas, e o escritor pediu informações minuciosas, havia tempo, sobre a vida nos seringais. Em chegando ao Sul maravilha publicou essas reportagens e naturalmente as assinou. Plácido de Castro, que não era de levar desaforo impunemente, como um bom gaúcho, sentiu o golpe e denunciou Euclides como plagiador. Resumo: o bicho pegou e essas picuinhas de ego também são cultura, e interessantes motes dramáticos para entretenimento.

Sussurro dos becos...!

Ouvi sussurrando nos becos, cochichando nas esquinas, que haverá a dramatização do enterro do Chico Mendes, num de seus capítulos. Ouvi também, que haverá convidados especiais, profissionais da mídia, celebridades, que participarão de ato tão elevado, religioso e engajado.

Soube por esses sussurros que uma das dúvidas foi com que roupa essa gente, tão ciosa de sua elegância casual, vestiria durante o enterro. Grife famosa não pode. Bolsa Vuitton muito menos. Quem sabe uma bolsa capanga, dos anos 80, com o couro vegetal de hoje ecologicamente correto? Hein, quem sabe?!...

Dúvidas, dolorosas dúvidas... E a dúvida é sempre uma expressão de inteligência, de humildade. É verdade que parte dessa gente não é assim tão alheia à biodiversidade do mundo de Chico Mendes: a capivara da Lagoa Rodrigo de Freitas também é uma espécie amazônica, como não? Se possível fosse ressuscitar o Chico Mendes, poderíamos apostar numa sonora gargalhada, partilhada com aquela doçura que Deus lhe deu: “Égua de gente metida a besta”.

Edílson Martins é jornalista e escritor acreano. Autor, entre outros, dos livros: “Nossos Índios, Nossos Mortos”; “Amazônia, a Última Fronteira”; Nós, do Araguaia”; e “Chico Mendes, um Povo da Floresta”.

3 comentários:

Anônimo disse...

Agora entendo porque o J.B. não publicou o texto do E. Martins...é muito complexo! Correção, a produção de cana está associada ao programa do ETANOL. Apesar de precisar de 15% de alcool para sua fabricação - rota etílica - o Biodisel utiliza sementes de oleagiosas como materia prima: soja, mamona, pinhão-branco etc.

Anônimo disse...

Pelo visto nao foi apenas o Tiao Maia que nao gostou de nao ter aparecido na minissérie. O Edilson Martins deixa transparecer o mesmo. Por isso o Glogo nao publicou o artigo dele?

Anônimo disse...

perdoai - meu pai! eles não sabem o que dizem...