quinta-feira, 22 de fevereiro de 2007

EU MEREÇO

Leila Jalul

Que no meio do caminho há uma pedra e que há uma pedra no meio do caminho, Drummond já disse.


O meu caminho era um pedregulho só. Nas pedras eu topava, escorregava, caia, escangalhava a venta, levantava a poeira e dava a volta por cima. E ia, ia desembestada, com vontade de acertar.

Só nunca gostei de injustiça, mas, por não poucas vezes, fui obrigada a engolir calada um tantão delas. Coisas pequenas, aparentemente. Para criança, coisas pequenas parecem grandes.

Pois é, padre confessa, casa, perdoa, batiza, crisma, se imagina representante de Deus, mas, infelizmente, também vai ao banheiro, comete injustiças, tira partido do poder e outros enganos mais.

Aqui e em outros lugares católicos, o mês de maio era dedicado à Maria, mãe do Nazareno. Mês escolhido para o casamento. Paradoxal, a meu ver. Se Maria era virgem, que razão levou a igreja a eleger o mês para que as mulheres e homens se casassem e, deixando um rastro de sangue nos brancos lençóis, exatamente as mulheres perdessem a virgindade?

No dia 31, era a festa da coroação de Nossa Senhora. Crianças vestidas de anjo, com imensas asas arrematadas com arminhos brancos e coroas de cartolina endurecidas por purpurina prata, desfilavam na procissão e, depois, já na igreja, se ajeitavam numa arquibancada piramidal para o ápice da festa: a coroação.

Nos meses de fevereiro e março, os ensaios. Tinha que estar tudo nos conformes. A coroadora, a ofertora de rosas, a seguradora da coroa e o coro propriamente dito. Tudo dentro da marcação, como no teatro.

Por dois meses fui enganada pelo pároco. Minha voz de contralto, forte, dramática e plena, ecoava do altar-mor e fazia-se ouvida no fundão da igreja, sem qualquer recurso. Só gogó.

Aí que apareceu a pedra. O governador era tio de uma soprano irresistível. E assim, de véspera, fui substituída. De coroadora, baixei para o degrau de ofertora das rosas que nem rosas eram e nem falar falavam.

Tudo pela fé. Não desisti. Embora desconsolada, sabia que Maria era melhor que eu, que o padre e que a “outra”. Fui, mas sem seguir as ordens do ensaio. Ao invés de segurar o ramalhete contra o peito, fiquei com ele levantado. Fui um anjo com porte de estátua da liberdade. Era o meu protesto.

Entreguei as flores e, antes de esperar os aplausos, desci, levei um mochicão do padre-diretor. Fiquei de mal com ele por quase cinqüenta anos. Agora fizemos as pazes e nos comunicamos, como se nada tivesse acontecido.

A soprano sumiu. Maio não tem mais a mesma beleza e, virgem, bem, é coisa rara na praça.

As pedras no caminho insistem.

Nenhum comentário: