quarta-feira, 17 de janeiro de 2007

A PRODUÇÃO DA IDEOLOGIA

(Novos papéis velhos)

Antonio Alves

Este é um daqueles textos da política, feio e apressado, escrito num período de transição, pouco antes do Jorge Viana assumir o governo, após as eleições de 1998.

Não tenho grandes vontades de publicá-lo, mas o único que guardou cópia dele foi o Elson Martins, que passou para o Altino Machado copiar. E estando na mão do Altino, só duas pessoas ficam sabendo: Deus e o mundo.

Então é melhor explicar do que se trata.

Na essência, é uma proposta de gestão compartilhada da Educação, da Cultura e da Comunicação. Pensei que isto seria fácil, principalmente porque eu estaria na Fundação de Cultura, Binho Marques na Secretaria de Educação e Aníbal Diniz na Assessoria de Comunicação e éramos velhos amigos, companheiros e compadres.

Funcionou na prática porque a Fundação não tinha dinheiro e eu acabava recorrendo a eles para pagar gasolina, comprar livros, contratar estagiários... A Comunicação e a Educação eram os primos ricos da Cultura. Mas não era bem isso o que havíamos pensado.

O problema é que pegamos um estado-sucata e tivemos que ficar, cada um na sua trincheira, tentando resistir e fazer alguma coisa. Hoje até compreendo alguns dos nossos erros como sendo inevitáveis, pelos limites que a situação nos impunha.

Agora, no início de um novo governo –e um governo que tem a tarefa de recuperar idéias e projetos originais- me lembrei do texto e prometi ao Binho que tentaria localizá-lo.

Podemos ver o que foi realizado, o que ainda falta, o que é atual e o que está ultrapassado. Talvez sirva de orientação para planejar, assim: dois passos atrás, um pulo à frente.

Do baú do Élson para a vida, segue o texto:

1. As atividades de cultura, educação e comunicação constituem um setor da vida pública voltado para a formação de mentalidade, opinião, valores éticos, produção e divulgação de idéias, ou seja, um setor diretamente ligado ao exercício da cidadania. A cultura é o campo geral de valores, hábitos, costumes, comportamento e habilidades, no interior do qual se inserem com grande destaque a educação e a comunicação. Nas estruturas administrativas do Estado, essas três áreas têm funções comuns: formação, informação e afirmação (de identidade e valores). Devem ser, portanto, analisadas como um único e amplo setor da administração pública, com organismos diversos atuando sob diretrizes comuns.

2. Quanto à participação desse setor no desenvolvimento econômico, é difícil fazer estimativas exatas. No entanto, há indicativos de sua enorme importância. A Secretaria de Educação tem metade dos funcionários públicos, movimenta, por força da lei, pelo menos 25% do orçamento do Estado e dos municípios. A quantidade de jornais e emissoras de rádio e TV mostra que a participação da comunicação também não é pequena. Mais difícil de visualizar é a contribuição da cultura, pela sua amplitude (cultura é quase tudo), mas se considerarmos apenas o consumo de livros e discos, os espetáculos, animação de casas noturnas, atividades esportivas e eventos artísticos em geral, teremos uma idéia da amplitude e do contínuo crescimento do mercado de produtos culturais.

3. Há, no entanto, uma limitação na participação desse setor no desenvolvimento econômico, semelhante à de outros setores da economia regional: livros, discos, instrumentos, equipamentos e até as carteiras das escolas são importados. Mas vale também para a produção simbólica: músicas, texto de peças teatrais, métodos pedagógicos, quase nada é produzido aqui. O resultado é o crescimento do mercado de trabalho para produtores locais e a descapitalização contínua da economia regional.

4. Obviamente, a estratégia básica para esse setor é a do estímulo à produção local. Não se trata, como em outros setores da economia, de promover uma "substituição das importações", pois deve-se garantir o acesso da população à educação, à cultura e à comunicação universais. Trata-se de abrir espaço também para a produção simbólica local, utilizando, se necessário, a reserva de mercado e incentivando a produção material e a geração de empregos correspondente.

5. De qualquer forma, é indiscutível a importância do setor na produção da ideologia que dá sustentação ao projeto de desenvolvimento. O que temos hoje é a produção de uma ideologia da carência e do assistencialismo, da dependência ao Estado, da valorização dos produtos importados, da privatização de serviços e espaços públicos. O que queremos ter é um consenso social na direção oposta: uma ideologia do trabalho, da auto-gestão, da valorização dos produtos regionais, do respeito aos espaços e serviços públicos, do investimento de longo prazo, da mentalidade empreendedora. A população do Acre precisa visualizar um horizonte de desenvolvimento possível, uma utopia social que possa ser realizada. O trabalho na cultura, na educação e na comunicação será o de ajudar o povo a criar essa utopia e dar-lhe a certeza de que ela pode ser realizada.

6. Quanto à contribuição do desenvolvimento humano, o setor tem servido como correia de transmissão para o processo de colonização, de dominação de classe, e para a veiculação de preconceitos arraigados na mentalidade nacional. Assim, há uma permanente desvalorização das identidades locais, que contribui para a opressão social: índios, seringueiros, desempregados, mulheres, negros, crianças e adolescentes, setores colocados em situação de risco social, têm seus direitos constantemente cassados pelo sistema que produz a mentalidade dominante. Os 20% de crianças que permanecem fora da escola não são alcançados por nenhuma outra política cultural e entram no noticiário na condição de "marginais" ou "vítimas".

7. Através dessa produção ideológica da marginalidade legitima-se os procedimentos de exclusão social: a violência policial, a falta de atendimento médico, a falta de moradia etc. Ou seja, o setor de comunicação-cultura-educação não produz a exclusão física mas a justifica pois fornece ao povo uma imagem distorcida de si próprio. A mentalidade dominante não reconhece o povo como produtor de cultura, morador ou cidadão, mas o descreve como ignorante, invasor de terras, violento, doente etc. Ao mesmo tempo o trata como receptor passivo (público-alvo) do assistencialismo, desconsiderando suas reivindicações e protestos legítimos e impondo-lhe uma tutela política: o povo "carente" não sabe o que quer, são os seus "benfeitores" que sabem.

8. Naturalmente, a estratégia a ser seguida para superar essa situação deve ser a da promoção da cidadania. Seu instrumento básico é a universalização do acesso aos bens simbólicos, a educação, a cultura e a comunicação. Nas escolas, espaços culturais e veículos de comunicação do Estado, a palavra deve ser dada aos cidadãos. Mais ainda, deve-se adotar a política de "inversão de prioridades", ou seja, as parcelas mais pobres da população devem ser atendidas com urgência e as políticas públicas devem estar voltadas para promover sua inclusão como produtores de cultura e como interlocutores na comunicação.

9. Quanto à organização institucional e política, há uma inadequação que se expressa de duas maneiras. Uma, pela bagunça administrativa, acompanhada do sucateamento das instituições, provocada pela corrupção e pelo descaso. Outra, pela estrutura autoritária do sistema: a administração das escolas, dos espaços culturais e dos meios de comunicação caracteriza-se pela centralização. O Estado fala, o povo escuta sem direito ao aparte. Tudo é organizado para impedir a participação popular. Não existem fóruns de representação e de controle público.

10. A saída, evidentemente, é a participação popular democrática através de conselhos, comissões, assembléias, conferências, os mais variados instrumentos de representação e controle, adequados ao caráter e ao funcionamento de cada instituição. É a participação popular que pode fornecer uma avaliação de desempenho capaz de garantir a competência administrativa e a honestidade na aplicação.

11. Pelas características comuns dos órgãos de educação, cultura e comunicação, torna-se necessário criar uma matriz de gerenciamento compartilhado. Cada órgão público do setor deve ter no planejamento e na execução de suas ações a presença de cada uma das três áreas da administração, mesmo que sua chefia imediata seja responsabilidade de apenas uma delas. É também necessário buscar a autonomia de cada órgão e cada programa, descentralizando ao máximo a administração. A situação atual é adversa. A análise de cada uma das três áreas mostra as dificuldades que teremos que enfrentar.

Antonio Alves é jornalista. Quando escreve no blog O Espírito da Coisa é uma delícia, mas quando resolve desenhar...

5 comentários:

Anônimo disse...

Fiquei curiosa...

Anônimo disse...

Caro Altino,

Aprender com o passado é um dos caminhos da sapiência. Espero que o Novo Governo tenha isso em consideração. Acredito que Antônio Alves é um daqueles que não aparecem, mas fazem muita coisa acontecer. E apesar do jogo político não mudar, é possível a gestão de um estado ser feita de modo inovador, beneficiando mais igualmente as pessoas. Já foi um grande passo o Acre começar a sair da rabeira do desenvolvimento humano. Pois, muitos tentam, mas poucos conseguem ao menos começar essa mudança.

Fui aprovado no último concurso do governo para a área de gestão e tenho vivido de perto o funcionamento da máquina. Algumas secretarias andam mais que as outras, por competência do secretário e de sua equipe. As que não andam geralmente estão com seus quadros envolvidos na política ou não possuem competência realmente para tocar o barco. Nestas secretarias as cabeças pensaram mais na cena política ou não tiveram idéia e nem pique para acompanhar o ritmo alucinante de Jorge Viana/Gilberto Siqueira.

É época de transição e apesar de serem do mesmo partido tenho notado que Binho e Jorge são bem diferentes quanto às características no governar. Binho parece calmo e pensador e por isso está matando alguns de impaciência, principalmente aqueles acostumados ao ritmo do governo passado. É preciso lembrar que as fábricas, empresas, financiamentos já foram trazidos pelo Jorge. Agora Binho parece querer cuidar de como inserir efetivamente os acreanos nestas fábricas, empresas e grandes financiamentos.

Pessoalmente, acho que esta transição não tem sido muito boa para um grande número de concursados. Em alguns órgãos os novos funcionários tiveram que lutar para conseguir trabalhar, pois os antigos contratados tratavam os projetos do governo como seus. Informações não eram repassadas ou simplesmente tínhamos que conseguir tudo na marra, como num governo amador, antigo. Em algumas secretarias os funcionários contratados ainda estão correndo para fazer “termos de referência” e manter seus cargos pelo menos até o final do ano. Os concursados, portanto, tem que se submeter ao que vier nesses termos de referência, pois a grande maioria ainda não tem autonomia para tocar os projetos de governo.

Existem tantos aspectos relevantes em uma transição e a imprensa local apenas noticia quem poderá ser tal secretário ou especula as palavras do governador. Grande parte dos cargos nos últimos concursos foi criada pelo próprio Binho. E por enquanto não está havendo treinamento, nivelamento, ninguém quer passar a bola para os concursados para não perder o emprego. Parece que Binho quer enxugar a máquina, mas quem ficar vai ter que trabalhar por dois, três. É preciso, portanto, que estes que ficam estejam preparados para implantar o novo cuidar de Binho. Espero que o governador lembre-se destes funcionários nesta transição.

Grande Abraço.

Anônimo disse...

Muito instigante! É um ótimo caminho. Particularmente acredito que, com relação a Cultura, a Lei de Incentivo é muito mal empregada. Virou campo político. O dinheiro é demarcado para setores de quem tem trânsito no governo. Por exemplo, financiar Hip-Hop de um grupo da periferia é um desperdício ou não é? do ponto de vista de produção cultural! Do ponto de vista da sociabilidade pode até ser positivo. Mas em menos de 4 anos essa manifestação já terá sido substituída por outra, através da reprodução dos grandes meios de comunicação, e os nossos jovens buscarão apoio público para financiamento dessa nova 'onda' tirânica. Num estado pobre, os recursos da Lei deveriam ser mais direcionados. O tempo que ela está em vigor já dá pra avaliar os bons resultados e os duvidosos. Boa parte desse dinheiro pode ser utilizado pela própria FEM em projetos gerenciados com mais profissionalismo, com o objetivo de promover resultados mais consistentes. O festival de quadrilhas, por exemplo, já é uma tradição que todo ano leva recursos da lei. No interior, a lei é mais política ainda. É demarcada. Não se vê critérios técnicos na seleção dos projetos. Isso também é ruim para a imagem do governo. Pois os excluídos da panela política já sabem que não têm chances, mesmo que seu projeto seja o melhor do mundo. Aí o dinheiro some em projetinhos de fundo de quintal para meia dúzia de apadrinhados, sem nem mesmo buscar visibilidade alguma, que pelo menos influenciasse mais pessoas. Se o Acre fosse um campeão na arrecadação de ICMS, essa forma de aplicação da Lei até que valeria, porque coloca na mão das pessoas a autonomia. Mas o Acre não pode se dar a esse luxo, já que se quer mais objetividade. A Lei de incentivo precisa ser re-avaliada. Os projetos precisam ganhar as escolas e a mídia. A imparcialidade e avaliação puramente técnica precisam ser prioridades. Os pontos de cultura do governo federal talvez sejam espaços mais produtivos. Os centros da Juventude também são ótimos espaços mal utilizados. Enfim, é preciso gastar mais neurônio para melhorar.

Anônimo disse...

Altino,

Acho que o texto mostra em resumo a vontade de promover a inclusão social do povo acreano naquele momento. Muita coisa foi e está sendo feita. Fiquei impressionado com a abrangência do sistema de telecomunicação do estado. Cada município tem seu momento de inserção no sistema de comunicação do governo.

Apesar disso, há com certeza muita coisa a ser feita. É claro que a geração de renda (mercado) é parte desse sistema, porém é preciso tomar muito cuidado para não invertermos os papéis. O PSDB do Pará, por exemplo, fez a cultura de modo elitista e centralizadora no urbano. Aconselho a leitura do texto do Professor Fábio Fonseca da UFPA sobre a confusão cultural do PSDB paraense. A nova governadora do Pará, do PT, vai ter que rebolar para reconstruir a cultura paraense, dilapidada em 12 anos de idéias mercadológicas do PSDB. O texto serve principalmente de alerta aos que cuidam da cultura de um povo.

"Os dez pecados da política cultura do PSDB no Pará" pode começar a ser lido neste link:

http://hupomnemata.blogspot.com/2006/11/os-10-pecados-da-poltica-cultural-do.html

Para ler o resto clique no Marcador "Política Cultural"

Abs.

Anônimo disse...

Caros Antônio Alves e Altino,

Desculpem-me, mas não resisti a esse texto e ele me chama para algumas considerações:

1) Toinho foi muito feliz ao afirmar que é indiscutível a importância do setor (cultura, comunicação e educação) na produção da ideologia que dá sustentação ao projeto de desenvolvimento. O que vimos nos últimos oito anos foi, sem dúvida, a mudança de alguns dos aspectos posteriormente citados: valorização dos produtos regionais – diga-se artesanato, da história (vide minissérie da Globo) e respeito aos espaços públicos – que estão revitalizados e humanizados, como os inventores/reprodutores da nova ideologia costumam chamar. Mas não conseguiu mudar a dependência de todos os setores do Estado: a cultura tem incentivo público – mesmo quando não promove ou financia, patrocina, de preferência para aqueles projetos que não se opõem ao status quo. Não que eu desaprove, mas é uma constatação. A comunicação não só mantém os meios já existentes, que algumas vezes deixam isso claro de uma forma desnecessariamente submissa, como criou seu próprio espaço, que serve, em muitas ocasiões, para reproduzir essa ideologia da atual (para usar um termo presente no próprio texto) “mentalidade dominante”.
É verdade que alguns investimentos privados (financiados ou não) têm perspectivas a médio e longo prazo, mas dentro de um caminho traçado pelo governo. A tão sonhada mentalidade empreendedora não vai além disso, tanto que o próprio governo criou um Fundo de Aval, parece-me que já extinto, e fortaleceu a parceria com o Sistema S (o Sebrae é quase uma extensão da SEPLANDS).
Não poderia deixar de falar na florestania (estou indignada! O Windows não reconhece essa palavra! Alguém tem que falar com o Bill Gates!), não do seu significado, mas do termo em si. Que sacada maravilhosa! Parabéns! Isso sim nós podemos chamar de “produção da ideologia”. Acre, o Estado da florestania. Quase perfeito. Ela sim contempla a parte do texto que diz que “a população do Acre precisa visualizar um horizonte de desenvolvimento possível, uma utopia social que possa ser realizada”.
2) A correia de transmissão dos preconceitos contra as identidades locais foi quebrada; ser descendente de seringueiro agora é moda, embora, como diz a ministra Marina Silva, se você pedir para esses ditos descendentes jogarem farinha na boca com a mão, a metade não vai conseguir o feito sem sujar a cara toda. Deixei de fora da correia a questão da colonização por, bem particularmente, considerar que houve um deslocamento da área rural para a área urbana, principalmente na esfera pública. E prefiro não me estender nesse comentário. Exclui também a questão da dominação de classe por motivos óbvios – isso dá um livro! Aliás, o mundo se divide entre os que contestam e os que defendem o marxismo, ou o que fizeram da ideologia de Karl Marx. Mas não posso deixar de comentar que a “mentalidade dominante” continua impondo o povo a uma tutela política e agindo como benfeitores, pois os instrumentos de representação são forjados e as vozes que se opõem, não ao governo, mas a algumas estratégias adotadas por ele, ao invés de serem ouvidas e avaliadas são expurgadas e ridicularizadas.
3) Citei brevemente a questão da valorização dos produtos regionais por considerar que pouco foi feito pela parte produtiva e a valorização maior se deu com os produtos madeireiros. Mas também vou passar batido nessa pois teria que entrar nas análises econômicas e comentar sobre assuntos que pouco conheço, como o modelo cepalino da “substituição das importações” (viu, Profª. Eurenice, como tenho estudado direitinho?) que o Toinho diz necessários aos setores de desenvolvimento econômico. Mas tenho, sim, opiniões a esse respeito.
4) Acho a parte que mais conseguiu atingir os objetivos almejados foi a educação, que conseguiu excelentes resultados, tanto em índices de inserção de crianças e adolescentes nas escolas quanto na democratização da gestão escolar. E espero, de coração, que o novo Governador consiga estender esse sucesso à toda administração pública, mas tendo em mente que as esferas são distintas e, por isso mesmo, as ações também devem ser.

No mais, para não parecer a bruxa má da história, quero dizer que comprei uma dessas falsificações das blusas que o governo passado criou e distribuiu, aquela com o nome Acre bem grande e traços indígenas nas mangas, para levar nas férias. Fez o maior sucesso! E, quando me ofereceram um açaí com granola e castanha-do-Pará lá no Rio de Janeiro, não me contive e tive que abarcar essa resposta: Não, obrigada, só como açaí com farinha, de Cruzeiro do Sul, é claro.

Altino, você tem razão, o jornalista Antônio Alves é melhor que o desenhista, e muito.

Um abraço.

Krisba