terça-feira, 16 de janeiro de 2007

ESQUEÇA O QUE VIU, OUVIU?

Leila Jalul

No finalzinho de 61, mais uma vez fui mandada para “ajudar” nos serviços domésticos uma irmã de minha mãe. A mesma de sempre. Parece carma. Um vôo mais longo até Niterói. Na chegada, nada de bom na cidade. O Gran Circus Norte Americano havia sido incendiado criminosamente por um maluco chamado Dequinha.

Ainda havia cheiro de gente queimada no ar. Hospitais lotados onde adultos e crianças sofriam as dores das queimaduras do primeiro até o quarto grau. Sem contar as outras dores...Uma tragédia inesquecível.

E lá me vou instalar na Ferreira Martins, quase esquina com 5 de Julho, numa vilinha onde moravam Marli, Seu Sinforoso, Seu Joaquim Português, a esposa e uma filha chamada Teresa. Não dá para lembrar de todos. Mas, em resumo, era uma vila feliz, ou quase feliz.

A distância de casa me fazia odiar a humanidade. Por sorte, um colégio bom, das Sacramentinas de Nossa Senhora, era meu refúgio maior. Mineirinhas de Manhuaçú e Manhumirim, irmãs Mazarello, Glória, Catarina e madre Letícia sabiam, direitinho, o perfil de cada uma das meninas maluquinhas que por ali se encostavam.

Outra dádiva eram as meninas ricas que não deixavam as pobres na pior. As filhas e sobrinhas do governador Badger da Silveira (morto em acidente aéreo) me traziam roupas, doces de aniversários e outros mimos. Éramos três sem família – eu, Águeda, uma paraguaia, e Cida, uma órfã. Fazíamos a festa. Águeda tinha mais sorte. Tinha dois irmãos da Marinha Mercante que iam visitá-la sempre que podiam.

Um dia, para ser mais breve, me cansei daquela vidinha. Subi na parte nova do colégio, ainda em construção.

É hoje. De hoje não passa.

Se eu for para casa dos parentes de minha mãe, vai ser pior. Ficar nesse mundaréu cheio de freiras, nas férias, sem direito de praia, tomando conta da cachorra Zoraide e fazendo quitutes com os produtos enviados pela Aliança para o Progresso, fedidos e cheios de gorgulho, isso não. Não. Chega!

É hoje. De hoje não passa!

E subi as escadarias perigosas, até o quarto andar, olhei pra baixo, rezei um Pai Nosso, um Creio em Deus Pai, umas quarenta Salve Rainhas, outro tanto de Ave Marias, uns trezentos Deus de Bondade e Misericórdia, livrai-nos do fogo do inferno, levai as almas todas para o céu e socorrei principalmente as que mais precisarem: eu, de preferência!

Dei uma olhada no entorno, e, de repente, numa casinha com laje, vejo uma quarentona, nuinha em pelo, fazendo imoralidade oral e escrita com um pastor alemão de pequeno porte. Caramba! Nunca pensei que meus olhos fossem ver aquilo.

Desci feito maluca. E contei tudo para a irmã Mazarello. Ela pensava que eu estava mentindo. Subimos depressa e a indecência ainda continuava. A freira tapou meus olhos, deu mais uma espiadinha e me arrancou do local.

Descemos correndo. Chegamos sem ar, resfolegando. Atônitas, tão atônitas que a freira até esqueceu de baixar a saia do hábito e ficou expondo as pernas branquelas.

- Esqueça o que viu, ouviu?

- Ouvi sim, senhora.

Esqueci de tudo. Até de me suicidar. Só uma coisa me chateou nesse episódio. Não foi possível o mundo conhecer o mais belo poema-testamento que já escrevi. Uma pérola. E eu só queria mesmo era colo.

4 comentários:

Anônimo disse...

Leila,
o pastor alemão de pequeno porte era um cão, ou um servo de Deus? Silene Farias

Anônimo disse...

É um belo conto. Esse incêndio no circo foi muito comentado. Recentemente li ou ouvi algo sobre um homem sobrevivente que teria passado por inûmeras cirurgias plásticas. Naqeles tempos as tragédias eram raras como a que aconteceu a Aida Cury. Depois,o assassinato de Leila Diniz. Agora as tragédias mais parecem um carrocel desgovernado, o progresso não passa de um delírio, a barbárie cresce assustadoramente. Seu texto sobre as igrejas evangélicas, semana passada, foi muito pertinente.São fundamentistas. O protestantismo europeu foi orientado no sentido de fundar uma nova ordem social e econômica. Mas o que acontece no nosso terceiro mundão é devastador.O desespero das massas lançou sua âncora na Bíblia e não sabem sequer distinguir o Antigo do Novo Testamento, a lei do Talião da pregação de Jesus que é não combater o mal com o mal. Parece uma bomba sendo armada vindo da periferia para o centro.como uma grande conspiração penetrando em todos os setores, de forma mais preocupante nas escolas, onde evangélicos fundamentalistas lecionam disciplinas como filosofia e sociologia, por exemplo. Uma ditadura do livro único. Os cinemas desapareceram e o único que existe é inacessível para alunos pobres e professores com orçamento apertado. Nossa juventude compra filmes em DVD pelas ruas que variam de "morte na motoserra", a "Casa de Cêra". Cenas hediondas, insuportáveis de ver, mas eles assistem como se estivessem fascinados.

Anônimo disse...

Fátima, quem foi assassinada foi Ângela
Diniz, a Leila Diniz morreu num acidente aéreo.

Anônimo disse...

Esse povo me enlouquece.
Silene, era de quatro patas, um focinho e um nó na pimba o pastor alemão. Os maristas viviam um pouco mais adiante.Amiga, reze um pouco pelo meu espírito inquieto. Não preciso de muita coisa!
Fátima, amiga minha, querida minha. Vamos esquecer esses fundamentalistas Vamos imaginar que nem todo asno é burro, nem todo jumento é cavalo. Tome quarenta gotas de elixir paregórico ou um comprimido de madrepérola de cibalena e vamos curtir a vida, Nem Buda, nem Urano, nem Lutero, nem Plutão poderá nos desencaminhar de niossos passos. Me entendes?
Chico Souto, obrigada por me tirar das mortes mandadas e das inventadas,
Beijo vocês com o ardor de ontem.
Leila