segunda-feira, 15 de janeiro de 2007

ELE NÃO LEU HOBSBAWN

A Bolívia é o país mais saqueado da América Latina, o Brasil o terror do continente e Ajuricaba o grande herói da Amazônia


Fátima Almeida


A entrevista publicada na Tribuna (leia) com o historiador boliviano veio em boa hora. Quase ninguém percebe que não existe no Acre um arquivo digno desse nome, por várias razões. Entre elas, o fato de que as elites se preocuparam muito mais em sumir com documentos do que em preservá-los, sem contar que o custo, para isso, é muito alto para instituições tão pobres. Vale lembrar a iniciativa de Jacó Picolli quando presidente da extinta Fundação Cultural em enviar a historiadora Mauricélia Barroso para La Paz, de onde ela trouxe vasto material fotocopiado para formar, devidamente encadernado, acervo bibliográfico do Museu da Borracha. Eu mesma li “Las Campañas del Acre”, do oficial boliviano Berlarmino Azcuiz, e fiquei indignada com a truculência das forças brasileiras. Resta saber se os documentos mencionados pelo ilustre historiador fazem parte desse acervo e, se não, providenciar uma cópia imediata e realizar um simpósio de história com exposição desses documentos.

Vale lembrar ainda que Pedro Martinello precisou ir a Washington quando pesquisou sobre a Batalha da Borracha que foi objeto de sua tese de doutorado. Leandro Tocantins escreveu Formação Histórica do Acre sem vir aqui, pesquisando em arquivos do Rio de Janeiro e no exterior. Esta é a razão porque a produção dos historiadores locais, na maioria, utiliza os recursos da História Oral. O que temos de acervo está fragmentado e disperso em alguns órgãos e em mãos de particulares. Durante o Projeto Rondon, por exemplo, nos anos setenta, conta-se que universitários paulistas levaram muito material que encontraram nos seringais. Mais recentemente um polêmico historiador, do qual não quero citar o nome, reuniu vasto material e levou embora como se fosse propriedade particular. É verdade que a História é uma interpretação, mas sem evidências, sem determinados documentos não se distingue de uma mera ficção. Esses saques estão no mesmo nível da biopirataria. Pior, pois não existe legislação quanto a isso.

Algumas impropriedades, contudo, perpassam pela entrevista citada. O conceito de revolução, por exemplo, desde Karl Marx só é aplicado quando uma classe destrona a classe dominante mudando de forma radical a estrutura social. Nesse sentido só ocorreram revoluções burguesas, em especial a Revolução Francesa quando o antigo regime dominado pela nobreza foi substituído pela ordem burguesa. As revoluções russa e cubana instituíram um socialismo de estado que impôs rígido controle sobre o trabalho em quase nada diferente do que os capitalistas fazem. Aliás, esse é o velho debate entre stalinistas e trotskistas que também marcou a revolução cubana. Quem matou Guevara? Quem não queria a revolução socialista em toda a América Latina. Fidel se aliou a Stalin num comunismo nacionalista que soçobrou.

A questão do nacionalismo é outro fato importante. Ele surgiu com força no século dezenove como um instrumento para convencimento das massas pelas elites que controlavam os estados, para que os jovens pobres fossem às guerras morrer pelos interesses do capital como ocorreu na primeira guerra mundial. Não foi por isso que mataram Rosa Luxemburgo porque ela avisava aos soldados para que não fossem morrer pelos interesses das burguesias de seus países?E mataram com uma coronhada na cabeça, jogando seu corpo no rio. Trostsky também foi morto com uma machadada na cabeça pelas mesmas razões. O nacionalismo pode ter sido um instrumento ideológico usado pelos empresários da Amazônia para conduzir a massa de seringueiros à guerra contra a Bolívia. Afinal eles não ganharam nada, nem mesmo sepulturas, o que é um sacrilégio. Nunca construíam, em Porto Acre, um monumento aos mortos, nem rezaram missa, apesar de ter havido um projeto ainda no governo Nabor Junior, feito por um grupo do qual fazia parte o historiador xapuriense Josué Fernandes. Eu vi.

O conceito de guerra é aplicado quando os dois campos em confronto estão em condições iguais e até agora acreditamos que isso ocorreu de fato.. Dizer que Plácido era um mercenário é forçar a barra, pois ele não foi à guerra contratado por nenhuma nação estrangeira.Ele foi um homem de armas do exército brasileiro que havia dado baixa e assumiu o comando do exército de brasileiros contra as tropas bolivianas. Se ele pretendia se tornar também um seringalista era muito natural, pois tudo aqui estava em formação. A história nunca pediu sua beatificação, Mas ele foi o grande estrategista que conduziu os acreanos a vitória...Do mesmo modo Galvez foi um homem brilhante que instalou um Estado moderno sem nada a dever a qualquer outra experiência desse tipo. O problema é que nem Galvez, nem Plácido interessavam aos poderes de então. O Amazonas queria anexar o Acre. O Governo Federal, mais poderoso, o anexou como território federal para exercer total controle sobre a riqueza produzida pelos acreanos, negando-lhes a tão desejada autonomia que só foi concedida com João Goulart, sessenta anos depois, como um ato de misericórdia, quando o Acre de então não interessava mais a ninguém.

Quanto aos tratados celebrados desde quando a questão se passava entre Brasil e Espanha o único princípio realmente válido era o uti possidetis. O que fazer se os brasileiros ocuparam área de floresta do país vizinho cuja economia, sociedade e cultura estavam todas estruturadas sobre o altiplano? Tanto é que os soldados bolivianos padeceram horrores nesse ambiente desconhecido, o que redundou em vantagem para os brasileiros. A floresta antes de qualquer coisa era dos povos indígenas. Toda a América.

É verdade que a Bolívia é o país mais saqueado da América Latina. E o Brasil o terror do continente, pois o que fez com o Paraguay não é uma mancha, é uma fratura exposta na nossa história. Com os de casa então, nem se fala, basta lembrar Canudos. Mas é verdade também que as elites europeizadas de La Paz beberam o sangue do pueblo de canudinho. Quem não lembra de Domitila?Aquele depoimento que circulou entre nós nos anos setenta? A história apenas nos leva a observar as forças que estão em jogo em determinado momento, o mais distante possível por questão de segurança. E todos mais parecem marionetes manipulados pelos banqueiros de Londres. De mais a mais, o grande herói da Amazônia foi Ajuricaba. E esses nacionalismos de historiadores retrógrados estão mais que defasados.


Fátima Almeida é historiadora acreana.

7 comentários:

Anônimo disse...

E quem foi esse tal de Ajuricaba?

Anônimo disse...

querida fátima,
gostei muito do seu texto. no entanto, você condena o que o brasil fez com o paraguai, mas não faz o mesmo com o que foi feito com a bolívia. porque? são situações assim tão diferentes? quanto à revolução: me diga acha q nossa questão acreana foi mesmo uma revolução?

um abraço.

Anônimo disse...

seu texto me pareceu muito mais inteligente e muito menos "nacionalista-acreano" do que os que já li sobre a questão acreana escritos por marcos vinícius, o historiador oficial do estado.
é um elogio.
outro abraço.

Anônimo disse...

Fátima, eu tenho comentado sempre sobre esse saque que ocorreu no território boliviano. Não sei escrever como vc escreve, uma vez que não pertenço ao bom time de mestres e professores de História que conheço e conheci.
Tomaram o mar, tomaram por cima, e comeram pelas beiras. Hoje, quando vejo o Evo Morales tentando cobrar com juros e correção monetária o que lhes foi roubado, fico tendente a estar do lado dele. Evidentemente que tem seus erros. Conheço a Bolívia de longas datas, sem nunca ter me inteirado de fatos, mas vejo naquele povo, tanto pelo do altiplano, os cambas quanto pelos colhas, um sentimento nacionalista ímpar. E nós, aqui das beiras incorporadas, sempre com a velha máxima que todo boliviano é ladrão, mas nem todo ladrão é boliviano. A recíproca, infelizmente, é verdadeira.
O Seu Patiño, ainda por cima, acaba com a prata e o estanho, deixando por lá crateras nas minas e nas almas mineiras.
Mas, sempre observei um sentimento de orgulho e um grau de politização. Você precisava ver, na grande invasão recente dos alunos brasileiros que foram estudar Medicina em Cochabamba, em Santa Cruz, em La Paz, a esculhambação que implantaram nestas cidades. Não falo de todos, mas dos que apenas queriam um "curso" nobre e que não conseguiam em suas cidades de origem. Repito, as exceções devem ser respeitadas.
Urinavam nos córregos que abasteciam as casas das famílias, quebravam e pixavam monumentos públicos, gritavam nos restaurantes onde famílias bolivianas silenciosamente almoçavam. Uma zorra. Isso para dizer que entendo os sentimentos de nuestros hermanos.
Mas vamos ao desaparecimento da papelada do Acre. Pedro Martinello, de certa feita, de Berkeley, me pede a primeira Bula Papal que nomeou o primeiro bispo prelado do Acre. A Núbia Celestino, de pronto, me fornece uma xerox da coletânea de jornais da época, bem conservados e encadernados por seu pai, José Nogueira. Tudo com muita recomendação, tudo com muito cuidado.
Os documentos públicos, aqueles de cartórios, eu vi e não posso provar, muitos foram levados não só pelos estagiários do Projeto Rondon. Muita coisa foi levada, no original, por pesquisadores americanos que aqui transitaram via institucional, num tal de programa de cooperação internacional que havia na Universidade. Veja, não quero aqui desrespeitar ausentes nem mortos. Não quero desmoralizar autoridades ou chamá-las de co-autoras dos fatos, mas que havia muita complacência, muito excesso de confiança, muito oba-oba, lá isso havia. E essa prática é antiga, porquanto permitida. A tese do Moacir Fecury, praticamente, foi toda pesquisada nos arquivos do Rio de Janeiro. Quero dizer que, no passado, essas ratazanas podiam agir livremente. Os donos das ratoreiras não estavam nem aí. Era voz corrente que a corrente de pesados elos que cercavam o obelisco, passaram a ser decorativas de uma piscina em Rondônia. Ora, se um troço pesado daqueles foi levado, imagina uns borradores e uma certidões que cabiam perfeitamente no fundo de qualquer mala.
Mas tem nada não, como dizia um professor da Universidade: a Flórida é aqui e com aqui se assemelha.
Um abraço e me perdoe por dar pitacos em assuntos de sua seara.

Anônimo disse...

O texto saiu com pequenas incorreções, século dezenove e não IXX, Portugal (e não Brasil) e dois pontos de interrogação a mais. Ao Monteiro posso dizer que se tratou de uma insurreição, uma revolta contra poderes estabelecidos, no caso o governo brasileiro e as autoridades bolivianas. Mas como disse Mario de Andrade: "é conto tudo aquilo que o autor diz que é conto", podemos extrapolar e dizer que foi uma "revolução" porque foi assim que os combatentes nomearam a questão. Mas no conceito marxista de revolução isso não aconteceu, porque não mudou a estrutura social ou seja, os seringueiros não ficaram com o controle da produção, tudo voltou ao que era antes.O Brasil poderia ter feito na Bolívia sim o que fez no Paraguay. Leila, eu amo a Bolívia. E aprendi a amá-la na sua casa em 77 quando todos nós ouvíamos Violeta Parra.Mas precisamos analisar que nos países andinos a questão é mais etnica que nacionalista no sentido europeu.Foram os europeus que inventaram bandeiras, escolas públicas como instrumentos para conduzir as crianças à adoração dos símbolos nacionais, a era napoleônica.Eric Hobsbawn discute isso em "A Era dos Impérios", Marilena Chauí publicou há dois anos "O Mito fundador do Brasil" onde discute o verde-amarelismo do período Médici. Na Bolívia se dá o fenômenos das macroetnias, ou seja, lá os indígenas são milhões, expoliados e expropriados pelas elites brancas.Antes de Evo Morales, a conta de água de La Paz era indexada ao dólar, a Sanacre de lá era uma companhia francesa, num dos lugares mais secos do mundo. Daí o populacho criticar as cholas dizendo que não tomam banho. No Brasil ocorre as microetnias, ou seja, centenas de nações indígenas numericamente pequenas,trezentas pessoas cada uma no máximo que foram facilmente dizimadas pelos portugueses. Na América espanhola não, as massas indígenas foram incorporadas ao mecanismo de exploração do capitalismo comercial.Essa classificação etnica foi dada por Darcy Ribeiro. O problema real do povo brasileiro e dos povos da américa espanhola sempre foram suas próprias castas dirigentes aliadas do capital internacional. São elas que comem pelas beiradas. E são racistas. No Brasil estimularam a imigração europeia para que o país não se tornasse uma nação negra como o Haiti.Evo Morales é produto de séculos de resistencia do povo boliviano que é indígena. Por fim, Ajuricaba foi um guerreiro indígena dos manáos no Rio Negro que liderou combatentes contra a presença portuguesa, chegando a aliar-se com os holandeses.A Coroa Portuguesa deu ordem para que fossem destruídos todos os guerreiros. Ajuricaba foi capturado e feito prisioneiro com duas bolas de ferro acorrentadas aos seus tornozelos. Arrastando-se ele se lançou no rio. Márcio Souza resgatou esse épico através do teatro.Ajuricaba sim foi o herói que defendeu o paraíso. Quem quizer ter uma idéia do paraíso que era a Amazônia só precisa ler as cronicas do século dezesseis de Carvajal, Rojas e Acuña.Um abraço para todos.

Anônimo disse...

Fátima,

os erros foram pespegados por mim. Já foram "recorregidos". Desculpa.

Anônimo disse...

Estou impressionada com os textos que estão sendo disponibilizados nesse blog. Que rara oportunidade de compartilhamento de idéias, reflexões, emoções e conhecimentos diversos entre pessoas até então ausentes de público. Primeiro, a Leila, surpreendendo com suas crônicas maravilhosas. Agora, a Fátima, nos brindando com suas análises sociais e políticas da história, de forma tão derramada, como é seu estilo. Só posso agradecer a vocês, Altino, Leila e Fátima, pelo prazer da leitura e das informações, que acabam estimulando outras formas criativas. Lembrando 77, exatos 30 anos atrás, quando fui para o Acre,ouvíamos na casa da Leila, juntos também com o Cleber, os compositores e intérpretes latinos Daniel Viglieti (uruguaio), Victor Jara, Violeta Parra e Isabel Parra (chilenos), Mercedes Sosa (argentina), Chabuca Granda (peruana), Lucho Cavour (boliviano), Geraldo Vandré, Sérgio Ricardo e cantávamos muito também,até altas horas.
Boas e belas lembranças. Gracias, hermanitos. Beijo a todos.
Keilah