terça-feira, 2 de janeiro de 2007

CHICO, MEU IRMÃO

Leila Jalul

Os carros de som passavam nas ruas fazendo a campanha presidencial. Lott e Jânio iriam disputar a eleição que, um ano (ou menos) depois, seria transformada na maior pilhéria da história do Brasil. Um louco de bigode, de olhos tortos, de pernas desmanteladas, viciado em bebida que passarinho não bebe, movido por forças ocultas, renuncia como se estivesse brincando de esconde-esconde com uma nação de mais de 70 milhões de gente.

Na Bolívia, a gente ouvia pelas rádios, a situação era também grave. Toda semana um golpe de estado. Foi por esse tempo que assassinaram um influente de la banda. Era tão influente, tão brilhoso, que nem lembro o nome. O povo na rua gritava "assassinos". E pou! Lá se foi mais um.

O som de taquara rachada ia e vinha pela minha rua: varre, varre, vassourinha/ varre, varre a bandalheira/ o povo, está cansado, de viver dessa maneira/ Jânio Quadros é a esperança/ deste povo abandonado.

Eu e meu irmão Chico, cúmplices e interligados tal qual siameses, subíamos na mangueira que meu pai plantou e já com frutos. A manga era tão boa quanto manga de cemitério. A semente veio do Ceará (grandes merdas!). Ficávamos ali, roubando nossas mangas de nós mesmos, achando que estávamos fazendo bem em apreciá-las. Ledo engano!

No dia em que meu pai descobriu que Chico fazia parte da colheita, diretamente do jirau, lança uma banda tijolo que acerta justinho na cabeça de meu irmão. Do galho em que me encontrava, só escutei o baque surdo e vi um corpo estendido no chão.

Às pressas, desci, e, por sorte, deu tempo ainda de ver aquele olhar pidão como se dissesse: "ta vendo, mana?" E morreu meu irmão.

Sentindo um ódio, subi de novo na mangueira e cantei a música do Jânio e, ao fim de cada estrofe, gritava a palavra de ordem dos bolivianos: "Assassino! Assassino!"

Enquanto viveu, Chico foi o macaco prego mais sem vergonha que conheci. Aquele troço encarnado e descarnado, no meio das pernas, sempre pronto pra bala.

Levantava a saia de todas as cozinheiras da casa grande e bebia todos os restos de cachaça dos cálices que os seringueiros do meu avô deixavam no balcão.


Enxotado, saía como se risse e se abrigava em meu colo. Nossos papos eram infindáveis. Nossos olhos se entendiam. Nada de palavras.

E foi assim que perdi Chico, meu irmão.

8 comentários:

Anônimo disse...

Caro Altino, uma pergunta:
Em que número da Rolling Stones saiu uma matéria sobre a política no Acre? Tenho procurado e não acho.
Um abraço
Luis Augusto Símon (www.blogdomenon.blogspot.com)

Anônimo disse...

Caro Luis, foi na primeira edição. Tive o trabalho de datilografar o texto da reportagem. Clique aqui para ler.

Anônimo disse...

Que maravilha de crõnica !
Que belo Chico !
Salve todos os Chicos !
Chico Buarque, Chico Souto, Chico Pop, Chico Pranchão, Chico Cesar, Chico xavier, Chico Mendes, Chico da Haydê,
São chico de Assis, Chico da Leila, Chico da Silva...

Anônimo disse...

Esse fato é real mesmo? O que aconteceu depois?

Anônimo disse...

Marcos, o fato é verdadeiro. Chico era uma graça. Não contei o que ele fazia quando se abraçava nas pernas das cozinheiras para não me chamarem de imoral.
Agora, meu irmão, se vc quiser que eu seja a Sherazade de seu reino, vou ter que inventar um outro capítulo para a história.
Um abraço.
Se ligue no próximo episódio!
Feliz ano de 2007 para vc e família.

Anônimo disse...

Leila,
Quando li a crônica, "vi" de relance os filhos de D.Azize, e não me lembrava do Chico. Que alívio! Era um "irmão", criaturinha de Deus e de São Francisco de Assis. Entendi a sua dor.E lhe digo mais, rezei para a "alminha" de uma certa cadela chamada Rina, que cismou de morrer à meia-noite do dia 26 de dezembro.Pode?
Um beijo e escreva mais, muito mais...
Heloiza

Anônimo disse...

Valeu o susto. Quando li sua crônica achei que se referia ao Chico Araújo, seu irmão mais novo, só no final vi que se tratava de um macaco. No começo fiquei entre duas possibilidades bem possíveis: primeira, que você tivesse pirado,como toda boa muçulmana deve estar por estes tempos.. segunda, que estava enveredando pelo realismo fantástico latino-americano a la Juan Rulfo, Manoel Scorza..ao final vi que era uma autêntica crônica acreana pela maldade onipresente, ora rápida e certeira, ora velada fingindo que não existe.

Anônimo disse...

Fátima,
Aqui todo mundo tomou vacina! Contra febre amarela, febre mostarda, sangue azul, desejos fúteis, enfim, contra todos os entraves da saúde mental. Gosto de mim quando vc gosta. Parece que estou no caminho certo.
Um beijo.