segunda-feira, 8 de janeiro de 2007

ALTAR DO SACRIFÍCIO

Leila Jalul

O velho era rico. Diziam que tinha um baú cheio de ouro. Trouxe do Líbano. Aqui se instalou, montou uma fábrica de refrigerante – o Guaraná Libertador.

Tudo gostoso e higienizado, nos moldes da Vigilância Sanitária. Garrafas verdes, líquido de cor variada, dependendo da cor da água do rio. Uns dias mais claras, outros mais escuras. Dependia...

O velho era rico e desejado pelas solteironas do Segundo Distrito. Tinha que ter senha para casar. Sobrancelhas espessas. Sério. Quase um Dom Casmurro. Do portugês, apenas rudimentos. Quase um Dom Casburro!

A moçada agitada, digo, a velharada agitada, se arrumava toda e transitava na frente da loja e da fábrica do velho.

O nome dele? Fácil! Chamava-se Mustafa Zacour El-Hindi. Currículo? Libanês, dono do Guaraná Libertador, proprietário de um baú cheio de ouro, de pulseiras feitas com libras esterlinas, de escravas em feitio de cobra e olhos de rubi.

Tudo de ouro! Gente! Tudo de ouro! Coisa fina! Tudo do Oriente! Seu Mustafa Zacour El-Hindi e vovô eram, exatamente nesta mesma ordem, o sub e o cônsul do Líbano nestas plagas.

Na casa grande se viam uns homens que tinham o coração no Acre e as lágrimas derramadas em Meca. Dava dó no coração ver, entre baforadas de charutos e chupadas no naguile, aquele povo longe do longe do longe, saudosos e desesperados por notícias da terra destruída.

Vovô ainda tinha uma foto do Gamal Abdel Abdul Nasser no criado mudo esquerdo de sua cama. E Seu Mustafa? Tinha quem? Eu mesma pergunto. Eu mesma respondo. Tinha nadica de nada! Só um baú de ouro e uma talhada de goiabada! Rico e pobre, ao mesmo tempo!

Até que um dia, cansado de ser só, manda buscar no Líbano uma morena, desde os 12 anos já prometida. Linda! Mistura de Margareth Tatcher e Farah Diba! Linda!

E eis que, a morena de olhos azuis, sem véu, sem mágoas, aporta na terra dos sonhos doces do Guaraná Libertador.

Ela tinha que ser bem recebida. Tinha que aprender a se comunicar. Tinha que ser mais forte que os fortes, tinha que ser mais branda que os cordeiros. Tinha que ser mulher falando fácil e encantando mais docilmente os homens da sociedade pouco doce.

Para aprender, um pouco de esforço. Primeira aula. Conjugação do verbo "ser", no presente do indicativo.

- Repita! Repita:
"Eu sou", "tu sou", "ele sou", "nós somos", "vós somos", "eles somos"

Não vou dizer que sou verdadeira sozinha, perguntem à Detinha. Ela também viu a cordeira chorando no altar.

Repita! Repita!

5 comentários:

Anônimo disse...

O Mustafa era um homem taludo, enérgico.A sua voz era uma voz, não era uma vozinha qualquer não. E o seu modo de pisar.. não dá para esquecer. Parece que o estou vendo. Tamanha vitalidade ele tinha. E o cintilar de seus olhos claros! Davam aquela rara sensação "eis um homem!"De m ais a mais, montar uma fábrica de Guaraná LIbertador e Laranjinha Paulista num tempo e lugar onde os outros eram varejistas é um atestado de competência.Porisso não me lembro dele como um "velho".Aliás, entre eles existiam várias espécimes de velhos. O Rachid da dona Zezé era um tipo de velho muito diferente do tipo do Omar Sakur, por exemplo.Mas peço licença para contar a história da Dona Felícia bem rapidamente. Ela veio do Líbano para Belém e de lá para o Acre trazendo uma filha só do casamento, a Vera cujo nome libanês teve que ser trocado porque as pessoas por aqui confundiam a pronúncia do nome dela libanês como um verbo nosso muito semvergonha.Pois bem, ela ficou hospedada ali na curva da Tentamen. E o jovem João Barrão a "viu" e logo logo foi lhe levar uma galinha de presente. Nunca mais se separaram.

Anônimo disse...

Fátima, vc está certa!
Essa imagem que tenho do Seu Mustafa é parte do meu lado velho.
Se visto hoje, pensaria nele como um baita empreendedor e homem de visão. Aliás, tanto acho que vc está certa que me sinto segura para dizer que ele, no meio empresarial, é injustiçadíssimo. Não conheço um prêmio, uma homenagem que relembre seu nome.
Meu "velho" é carinhoso. A outros ainda nomearei "velhos", pela força das minhas lembranças. Brevemente estarei falando nos "varejistas", que também tiveram seu valor. Vou começar pelo Rachid Daoui, percorrerei a nova avenida Beira Rio, até sentar na venda da Felícia para comer umas esfihas abertas, de coalhada, que são as mais saborosas.
Me comunique umas coisinhas:
- como se pronunciava o verdadeiro nome da Vera Barrão;
- se a galinha que o João levou era branca, preta ou pedrez;
- vc tinha bônus do Guaraná Libertador?
(dizem que as pessoas que tomavam muito desse refrigerante ficavam com uma pele maravilhosa!).
Um beijo grande.
Em tempo: O Seu Omar era Satut e não Sakur. Sakur era o avô do Carlos Alberto , pai da Jamana.
Outro beijo. Estou esperando um contato telefônico.

Anônimo disse...

Por falar em Tetamem, o que foi feito desse lindo casarão? foi preservado ? eymard

Anônimo disse...

O lindo casarão, Eymard, tá mais lindo do que nunca, em termos de conservação.
No processo de revitalização da cidade e dos próprios antigos, a Tentamen recebeu um banho de loja!
Evidentemente, meu caro, não possui o velho charme, nem abriga mais aqueles frequentadores e exímios pés de valsa do passado.
Muitos já subiram e dançam no céu lembrando com nostalgia dos beijos furtivos no pé das orelhas das meninas. Outros ainda estão no nosso reino, mas com pernas fracas.
O espaço é bem utilizado, creia nisso. O velho porão virou um amplo salão onde se realizam hoje exposições de artistas locais.
Os processos de restauração foram fiéis, tanto quanto possível.
Um abraço

Anônimo disse...

Não posso ou não devo dizer o nome libanês da Vera assim publicamente; a galinha deveria ser normal, castanha. Não tinha galinha prêta nos nossos quintais do segundo distrito.Tinha galinha preta lá pelas bandas do primeiro distrito. Eu bebi sim muito guaraná libertador e também Guarasuco de Belém a partir de dezembro quando chegavam os navios.