segunda-feira, 3 de julho de 2006

EIS O LEGADO

Juarez Nogueira

Cabem na mesma embalagem, caem na mesma teia, as aparentemente distintas e distantes realidades da estrada interoceânica e do povo Avá-Canoeiro. A conexão é mais funda, e dentro.

Nada, infelizmente, contra-indica: há muita estrada ainda para que se entenda a verdade cósmica, obviante, nas palavras daquele velho Chefe Seattle:


- O homem não teceu a teia da vida, é apenas um fio dela. Tudo que acontece à Terra, acontece ao filho do homem.

É esse homem, o fio "maculado" da natureza, no dizer de Schopenhauer, que tem reiterado atos vergonhosos sob pretenso e pretensioso progresso (eu não disse evolução!), a que não se opõem senão brandas altercações, calados protestos e indignações diluídas na certeza de que o brasileiro é, politicamente, um povo invisível.

A sina do povo Avá-Canoeiro é, de resto, a sina de todos nós, à beira da estrada interoceânica, além e aquém dela, à deriva das decisões do "futuro da nação".

A estrada que atravessa a vida e vira aquele sentimento de que já falei aqui antes: não somos um povo derrotado, mas vitimado pela ilusão.

O estudo de Marc de Dourojeanni, o documentário de Mara Moreira, as informações do blog do Altino, as utopias de Samanta Novella, vezoutra a poesia e o ipê ameaçado de extinção, cabem também na mesma rede e assomam qualquer coisa de crença ou esperança, tentativas de que o gesto não se perca na intenção de dizer ao homem a humanidade, belo sermão aos peixes.

Li o estudo de Marc Dourojeanni. Ele usa tecnicamente um termo a cujo significado me reporto com inquietação: passivos ambientais e sociais. Em outras palavras, enredados, aí estão: passivos humanos. E aqui a ambigüidade do termo não só inquieta, mas incomoda, encravada, faz indignar-se mais.

E mais quando se lembra que o presidente do povo invísivel declarou recentemente que "é fácil governar para pobre porque pobre não protesta", esse mesmo presidente movido a espontaneímos, que carimba o polegar em projetos como a dita transposição do rio São Francisco e empavona o feito:

- A transposição está na minha cota pessoal, é o legado que resolvi deixar.

Às vezes eu filosofo, penso que Deus criou o homem para ajudá-lo a tomar conta da criação. Era o sexto dia. No sétimo, Ele tirou para descansar, pernas pro ar que nem Deus é de ferro. Acho que ainda estamos no sétimo dia. E por mais que Deus tenha explicado ao homem, com sinais e avisos, esse "fio" d´Ele acha que o descanso é eterno e que Deus está dormindo...

Eis o legado.

O mineiro Juarez Nogueira é escritor e mora em Divinópolis.

4 comentários:

Anônimo disse...

O texto me lembrou tantas coisas...
Uma delas foi de uma aula de biologia, em que estudávamos os agrupamentos dos animais. Pelos estudos, o homem não pode ser considerado um animal social, pois na sociedade qualquer indivíduo é capaz de morrer pelo bem do grupo ou pelo bem da "casa" como acontece com qualquer abelha, que sob a menor ameaça à colméia ou às companheiras ferroa o agressor e morr depois por isso... Ao ser humano cabe mais a condição de rebanho... E como rebanho temos sido guiados... Como rebanho temos insistentemente pastado, pastado, destruindo vorazmente e incapazes de defender nossa própria casa...

Eu,pelo menos, como ovelha de um Deus dorminhoco ou não, gostaria de deixar um legado melhor do que isso...

Anônimo disse...

O texto me lembrou tantas coisas...

Anônimo disse...

O texto me lembrou tantas coisas

Anônimo disse...

Adorei o texto lúcido, firme e poético de Juarez Nogueira.

Gostaria que muitos milhões de brasileiros tivessem acesso a ele!