sábado, 11 de março de 2006

A CAÇA É FARTA



Por Elson Martins (*)

As famílias extrativistas do Vale do Juruá não escondem que de uns tempos para cá, a carne de caça está sempre à mesa: porcos do mato (queixadas), veados, antas e pacas, aves como mutum e nambu, macacos de várias espécies garantem sua alimentação nesse período de chuvas em que, com os rios alagados e barrentos, os peixes somem.

Uma outra explicação para a fartura é a migração das famílias de seringueiros que trocam os centos da mata pelas margens dos rios. Com isso os animais que haviam se afastado para regiões remotas estão voltando para mais perto, onde bebem água nos igarapés e lagos, e freqüentam antigos “barreiros” de frutos.

As histórias sobre caçadas, as reais e as fantasiosas, voltaram a animar encontros dos ribeirinhos. Já apareceu até quem jura ter matado um filhote de Mapinguari. Os relatos mais comuns (e verdadeiros), entretanto, referem-se a bandos de queixadas que em algumas áreas não fiscalizadas pelos moradores da Reserva Extrativista do Alto Juruá sofrem perseguição implacável.

Numa comunidade próxima à Foz do Breu, na fronteira com o Peru, nossa expedição conheceu um experiente caçador que falou da eliminação de um bando com 72 animais, de uma só tacada. Os caçadores peruanos, que estão próximos, levam a culpa. Entretanto, a reserva extrativista tem seus próprios predadores.

O presidente da Associação Agro-Extrativista do rio Tejo, José Augusto Ferrira da Costa, 35, falou do envolvimento do dirigente da Reserva do Alto Juruá (conhecido por Orleizinho) com um conhecido candidato ao governo do Estado que andaria pela região pregando uma política contra o manejo e preservação da floresta.

Augusto explicou que uma grande ameaça que ocorre na reserva, nos dias atuais, é a caça com a ajuda de cachorros treinados. Outra é a retirada de madeiras de lei através dos canais e baixios alagados. Uma terceira, talvez a pior, é a desinformação de muitos ex-seringueiros que lutam pela sobrevivência sem contar mais com a economia da borracha, completamente falida na região.

Contando com essa desinformação, segundo Augusto, o dirigente da Resex (à frente da entidade há oito anos) faz reuniões com ex-seringueiros, apresenta seu candidato predador e promete: “Se elegermos este homem vamos poder caçar com cachorros, livremente, explorar nossa madeira, trocar e vender colocações sem as proibições que hoje nos impõem”.

A mesma denúncia está sendo feita pelo presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Cruzeiro do Sul, João Ferreira, que cobra providências das autoridades e entidades ambientalistas. As atitudes de Orleizinho, segundo ele, ameaçam a natureza e também alguns projetos comunitários em curso na floresta

A caça de subsistência não está proibida, tanto que a Polícia Federal participou do Projeto Cidadão realizado em Marechal Thaumaturgo, em fevereiro, legalizando o porte de espingardas e rifles dos extrativistas. Com o documento estes podem comprar legalmente a munição (balas, pólvora, chumbo e cartuchos) que necessitam, mas terão que cumprir regras a para garantir a tolerância.

No rio Tejo, nós (membros da expedição) visitamos uma família de ribeirinhos que nos ofereceu uma farofa de ovos caipira com café quente. Se pudéssemos aguardar um pouquinho, sugeriu a dona da casa, ela prepararia um prato especial com algo que se encontrava ainda em pelo, numa panela grande na cozinha: era um macaco parauacu, pronto para ser pelado na água quente.

Agradecemos a oferta, claro, e abreviamos a partida.

Falando de caçadas, principalmente daquelas mais fantasiosas, fica difícil não lembrar do saudoso padre acreano José Carneiro de Lima que rolou a vida toda pelos seringais de sua terra. Nos anos setenta, eu e o jornalista José Alves,correspondente da revista Veja em Cuiabá, o entrevistamos. Alves acreditou em tudo que, pasmado, ouviu.

Num livrinho precioso que escreveu em 1986, padre José adverte aos incautos que entram na floresta sem conhecer seus segredos. Diz ele:

“No tempo dos amores (cio), os machos de antas, porcos e veados ficam loucos e começam a correr atrás das fêmeas, atingindo a velocidade de até 60 quilômetros por hora. para ver quem é mais “macho” ou tem mais sorte: fazem muito barulho nos matos, quebram galhos, cipós, brigam e acabam cansando e caindo”.

O pároco relata que viu um bando de onças transformarem a noite na floresta em um “inferno dantesco”, com “correrias, gemidos, miados, sopros cavernosos, rosnados, paus azunhados, raízes e folhagens revirados”, tudo de arrepiar o pêlo de qualquer homem, “mesmo macho”.

O cineasta John Ford recomendou através de um dos personagens dos fabulosos filmes que produziu sobre a conquista do oeste americano: se a realidade parece menos atraente que a lenda, imprima-se a lenda.

(*) Elson Martins é jornalista acreano

Um comentário:

Anônimo disse...

Êta Elson, que estás fazendo o que gosta: Viajar pelo Acre e escrever sobre seu povo. Tô até vendo esses olhinhos brilhando.