quinta-feira, 12 de janeiro de 2006

FINO DA BOSSA



O compositor e pianista João Donato deixa definitivamente para trás a fase de ostracismo, assume sua aproximação com o pop e se prepara para o lançamento de cinco álbuns.

Por Pedro Só (*)

Lá pelas tantas, João Donato cata o acordeão esquecido num canto do apartamento. Presente de Marisa Monte há coisa de quatro anos. Após uma sessão de gravação, a cantora levou o amigo até o táxi e botou o instrumento no carro: “Leva, você toca melhor do que eu”. Donato começa a tocar. Sua mulher, a jornalista Ivone Belém, dá pulinhos. Há décadas que ele não fazia um fole roncar. O fim de tarde no terraço do apartamento no Leblon é iluminado pela primeira composição do homem. Uma valsinha, feita aos 7 anos para uma certa Nini. A melodia é pura graça, mas não surtiu efeito na época. “Ela tinha 8 anos, não me deu bola. Apareceu outro dia no Clube do Choro, lá em Brasília: está com a mesma cara.”

João Donato também conserva a expressão de menino que brincava nos igarapés de Rio Branco, no Acre. Os “olhos do índio flechador” da mãe, como descreve um velho amigo de adolescência na Tijuca, Rio de Janeiro. Tem 71 anos, já sofreu um ataque cardíaco e fuma 15 hollywoods por dia. Mas o semblante é leve, de quem continua produzindo em quantidades amazônicas, com copioso talento. Ainda neste ano você vai poder ouvi-lo em vários discos: um dedicado a repertório cubano, outro chamado Na Evening with Bud and Donato, com o alto-saxofonista americano Bud Shank, e mais João e Maria, com a dupla Edson e Titã, e o novo trabalho de Marisa Monte. Ah, sim, e o disco com Carlinhos Brown, que teve as verbas federais de patrocínio questionadas pela imprensa e parecia arquivado. Donato anuncia: “Vamos fazer sem gravadora, sem lei de incentivo. O menino passou uns quatro dias aqui, enchemos cinco fitas. Ele é pura intuição, agora está tocando até piano. Não fica pensando em dó, ré, mi, fá, sol. E sabe que ele encontra a nota? Na metade do caminho, encontra!”

De Dorival Caymmi a Marcelo D2, passando por Gal, Gil, Caetano, Milton, Ângela Ro Ro e até Cazuza, quase todo mundo que importa na música brasileira já se valeu de seu piano único, do bom gosto como arranjador, ou das belíssimas soluções harmônicas ao compor. “Ele está junto com Miles Davis e Johnny Mandel (compositor e arranjador americano, uma lenda viva). É melhor que o Tom, que não inventou ritmo nenhum”, rasga Nana Caymmi. “É um dos maiores estilistas da música brasileira. Não é sinuoso, é objetivo, impressiona pela aparente simplicidade. Eu faço um paralelo com Thelonious Monk (gênio americano do piano bebop, 1925-1982)”, aprofunda o crítico e produtor Zuza Homem de Mello. Mas seu lugar na música brasileira é melhor definido por palavras de um colega que não está mais aqui para ver sua excelente fase: Tom Jobim, que o chamava de gênio e várias vezes disse que João Gilberto criou a bossa nova a partir da batida de Donato.


Humildemente, o acreano não está nessa de primazia: “Segundo o próprio João Gilberto, ninguém é inventor de nada sozinho. Ninguém inventou a bossa isoladamente, nem o João, nem o Tom, nem ninguém. E outro dia uma emissora de TV me perguntou se eu podia trazer o violão para a gravação! Mas eu acho que sou mais do que reconhecido”. Donato brinca que Marcelo D2 o fez famoso. “Sou reconhecido na rua por causa da participação no DVD dele”.

Pode até ser. Mas no quarteirão onde o pianista mora, o pessoal o conhece. “Eu falo com todo mundo. O jornaleiro André, o florista Raimundo, o pessoal do botequim. Aliás, dos dois botequins. Já chego dizendo ‘presta um merréis aí, eu moro aqui, daqui a pouco eu te dou...’ Melhor assim do que levar um mês pra ganhar intimida. É muito melhor que passar e não cumprimentar o cara, né?”

Apenas um vizinho, velho amigo, não tem lhe dado o prazer de trocar uma idéia: João Gilberto. Logo ele, com quem foi tão sintonizado durante um período decisivo para a música brasileira... Lysias Ênio, irmão e parceiro de Donato, explica que não há vilão na história. “Eles são muito parecidos. E têm suas indiossincrasias, que não são nada fáceis.” O pianista comenta: “A gente já teve época de se ver quase diariamente, depois entrou nesse parafuso... Nossa amizade evoluiu até um ponto em que... a gente hoje não se fala. Nós somos grandes amigos, gostamos muito um do outro, mas não nos falamos. Já tem uns seis anos. Ele mora a duas ruas deste apartamento e, desde que vim morar aqui, não fala comigo. Cismou com alguma coisa. Algum encontro a que eu deixei de ir, alguma coisa em que a gente não se entendeu. Ele ficou de mal. Mas é muito querido”.


João Donato é evangélico. De um tipo raro, tão light e discreto que pouca gente fora do meio musical sabe. A religiosidade, garante ele, não o impede de beber ou de, como gosta de dizer, “soltar uma pipa”. Sua conversão “foi por acaso”. Pelos idos de 1987, estava fazendo o arranjo para uma aparição de João Gilberto no programa Chico & Caetano, da Rede Globo. O amigo iria cantar Joujoux e Balangandãs com Rita Lee. O prazo estava no fim e Donato tinha recebido o ultimato: se não aprontasse até o dia seguinte, nem precisava mais se incomodar em fazer. “Saí na correria, naquela angústia: precisava comprar cassete virgem num lugar que fechava à meia-noite. Encontrei na rua com o Edson e a Titã (casal – ele, baixista: ela, cantora e violonista – cultuado na Europa por discos feitos nos anos 60 e 70) coçando a barriga. “Vem cá, que pressa é essa? Fita, tem lá em casa. Piano também. Você pode ir pra lá que amanhã fica tudo pronto na hora certa. Jesus vai te ajudar’. Eles me acalmaram.” Estava fisgada mais uma alma.


O disco que Donato fez agora com Edson e Titã, João e Maria, vai marcar o relançamento do selo Lumiar, pelas mãos de Jesus Chediak. Seu irmão, Almir Chediak, foi fundamental para uma virada na vida do compositor. A partir da publicação do Songbook, em 1999, é que as pessoas passaram a saber que Simples Carinho não era de Ângela Ro Ro, que A Paz não era todinha de Gilberto Gil. Nos três CDs lançados simultaneamente ao livro, Chico Buarque, Caetano Veloso, Gal, Gil, Edu Lobo, Ed Motta, Djavan Johnny Alf e um elenco all-star davam a dimensão de quem era o autor daquelas 42 belas canções. Daí em diante, Donato põe o nome em dois discos novos a cada ano. Isso sem contar a produção para um inusitado circuito Rússia-Japão.


Entre 1976 e 1995, porém, ele lançou apenas um disco: o instrumental Leilíadas, de 1986, em que não se deu ao trabalho sequer de batizar os temas. Nesse longo lost weekend, Donato não se considerava compositor e achava que as pessoas não aceitavam seu trabalho. “Era uma síndrome repetitiva. Eu não era muito procurado pelas gravadoras e também não procurava eles.” Sobrevivia fazendo arranjos, trabalhos por encomenda, sem paixão artística, “como um alfaiate”.


Pelos idos de 1958, Donato também viveu uma crise de rejeição. Sua música, antes aclamada na boate Plaza, celeiro da bossa em Copacabana, começou a ser vista como complicada, jazzística demais. O comportamento profissional do músico não ajudava. A maior queixa dele sobre o livro Chega de Saudade é uma associação de hábitos alcoólicos. “A turma do copo era Vinícius, Jobim, Antônio maria... Eu era de outra tendência! Nunca fui um bêbado quando jovem. Eu era maluco; falava que ia e não parecia, saía no meio do show. Se estivesse achando chato, quadrado... Cadê o piano? Foi embora!” Por essas e por uma certa patrulha telecoteco é que Donato saiu do Brasil, em 1959, rejeitadíssimo, e com o timing mais infeliz do mundo para um dos criadores da bossa nova. Isso não o impediu de fazer história tocando jazz latino com os melhores do gênero (Mongo Santamaría, Cal Tjader, Tito Puente), na Califórnia, durante 13 anos. Nem de virar referência para os brasileiros que naquela época vinham fazer a América: Astrud Gilberto, Tom Sérgio Mendes...

Agora, o que vem pirando o cabeção de uma nova leva de fãs são trabalhos funkdeados e psicodélicos como A Bad Donato (disco de 1970), tido por historiadores do jazz e da bossa como um mero pé de página na trajetória do compositor. D2, o produtor Mário Caldato e o DJ Marcelinho da Lua são fãs. Admirador da sabedoria harmônica e do suingue do pianista, Da Lua lembra de uma cena dele no estúdio, gravando seu disco Tranqüilo: “Em algum momento, ele, espancando o teclado, disse: ‘Já não sei onde ta o dó e onde ta o ré... ‘Maravilha!” Donato fala sério ao comentar: “Tenho uma boa sintonia com esses caras. Trinta e cinco anos depois, olha só... venho descobrindo coisas desde o tempo em que não me deixavam dar canja nas boates do Rio, em 1958. Imagina só o que eu penso agora...”

VIZINHO DO SÍNDICO
Durante seis anos, João Donato morou no mesmo prédio que Tim Maia: o Barra Palace, em frente à praia da Barra da Tijuca, no rio. Foi na virada da década de 80 para a de 90. Seu apartamento ficava no segundo andar; o de Tim, no décimo. Eles combinaram mil vezes de trabalhar juntos, o cantor sempre exigindo: “João, você tem que fazer pelo menos um arranjo por ano pra mim”. O interfone tocava e a intimação do “síndico” era na base do “João Donato, suba aqui agora, senão eu vou aí embaixo”. O pianista lembra bem. “Eu preferia subir, porque sabia que se ele descesse, não iria conseguir botá-lo pra fora depois, só chamando o síndico de verdade. Aí chegava no apartamento, ele me mostrava a mesa, assim... cheia de coisas... E ofereci: “Tem tudo aqui! Quer isso? Quer aquilo: (pausa) Quer dólar? Tem no cofre ali (risos)’. Chegava perto do cofre e dizia: ‘Ih, rapaz, esqueci a combinação’. Ou, então, propunha: ‘Vamos ligar para o João Gilberto?’ Telefonava e dizia: ‘Ô, João Gilberto, você não tem que cantar desse jeito pra dentro assim...’ imitava o João e tal. Você tem que cantar pra fora (imitando o estilo soul de Tim) Vou te contaaaar, os olhos já não podem veeeer... Explica isso pra ele, Donato!’ Eu pegava o telefone e o João dizia: ‘Pois é, né? Onde é que você foi parar?!!’.” Em 1991, o vizinho bufão gravou A Rã, de Donato, em seu Tim Maia interpreta Clássicos da Bossa Nova. O escalado para fazer o arranjo foi Antônio Adolfo, mas Donato não ficou com um pingo de ciúme. “O Almir Chediak (produtor do disco e grande amigo de Tim e de João) sabia o que estava fazendo: juntar dois doidos não riria dar certo.”

O MELHOR DE DONATO
Muito à Vontade (Polydor, 1962. Reedição Dubas, 2002)
Naquele ano de 1962, Donato passou dois meses no Brasil e aproveitou para gravar dois discos sensacionais. Este foi o primeiro. Donato tinha feito recentemente uma excursão histórica pela Itália com João Gilberto, Tião Neto (baixo) e Milton Banana (bateria). Entrou no estúdio com Tião e Milton, mais o percussionista Amaury Ribeiro, e mostrou, no auge da bossa nova, que havia caminhos ainda mais sofisticados. Os temas foram quase todos compostos no estúdio, em clima de improviso e total descontração.

A Bad Donato (Blue Thumb, 1970. Reedição Dubas, 2004)
O Blue Thumb era um selo alternativo da Califórnia por onde circulavam Arthur Lee (da banda Love), Marc Bolan (do T. Rex), o freak jazzista Sun Ra, o soulman Ike Turner e outros doidões. A idéia do diretor Bob Krasnow era jogar Donato no mundo do balanço funky e no gosto hippie. Uma loucura, mas funcionou. Acompanhado por Bud Shank, Ernie Watts e outros feras, o brasileiro antecipou o efeito hipnótico dos loops atuais em faixas irresistíveis como Bambu, Debutante’s Ball e Straight Jacket. A Rã coaxa como se tivesse engolido um pedal wha-wha. Reza a lenda que o solo de Lunar Tune foi cometido sob influência de LSD. Eumir Deodato, que tinha dividido com Donato outro disco mais bem cotado pela crítica tradicional (Donato Deodato, de 1969), partiu daí para fazer sucesso com uma versão pré-disco de Assim Falou Zaratustra.

Quem É Quem (Odeon, 1973. Reedição EMI, 2002)
É o divisor de águas de sua carreira. Marca a adesão às canções e aos vocais, seguindo o conselho do cantor Agostinho dos Santos. Cercado de bons Caymmis, Donato emplaca duas parcerias irretocáveis com o irmão Lysias Ênio: Até quem Sabe, com arranjo de Dori, e Mentiras, com a voz de Nana. Ahiê inclui uma ladainha de fazer inveja a D2: recados enigmáticos para um tal de Sílvio, incluindo “a poeira da cachoeira”, “aquele bar é uma vergonha” e “o pai José d’Angola tá te esperando”.

(*) A reportagem de Pedro Só (na foto, com João Donato) foi transcrita da revista Bravo!

Um comentário:

Anônimo disse...

Maravilhosa reportagem, maravilhoso João Donato.
Bacana você ter reproduzido.
Compositores no Brasil são tratados como sombras. A maioria dos locutores, que tem essa função primeira de divulgar o trabalho, não costuma citar o nome dos compositores.
Em Rio Branco só temos isto com a Aldeia.
Será que os novos cd's dele vão aparecer por aqui?