terça-feira, 6 de dezembro de 2005

DO JORNAL PESSOAL

Por Lúcio Flávio Pinto

Oito anos atrás pude ir à Itália receber, em Roma, o prêmio Colombe d’Oro per la Pace, que a Archivio Disarmo me concedeu. Fui o primeiro não-europeu a ganhar a pequena pomba em ouro sobre pedra de lazúli, considerada uma das melhores honrarias no jornalismo italiano. Outro dos quatro premiados era o deputado federal John Humme, da Irlanda do Norte, que viria a receber, no ano seguinte, o Prêmio Nobel da Paz. Os dois restantes eram o escritor Fatos Lubonja, da Albânia, e a jornalista Laura Becherelli, a única italiana selecionada nesse ano. No resto dos dias pude me deliciar com a ventura de estar em Roma, ao mesmo tempo uma cidade deslumbrante e depressiva, cheia de história e repleta de lacunas históricas, de salvação e de destruição.


Neste ano não pude ir a Nova York para receber outro reconhecimento internacional, o primeiro brasileiro lembrado para o Prêmio Internacional de Liberdade de Imprensa do CPJ. Mandei minha filha, Juliana, que muito bem me representou em todos os momentos do programa preparado pelo Comitê para a Proteção dos Jornalistas para a concessão do seu prêmio, tanto em NY quanto em Washington. No dia do banquete, 22, por feliz coincidência, meu nome apareceu em dois dos mais influentes jornais dos Estados Unidos e do mundo.

O New York Times usou minha opinião como uma das referências sobre o projeto da hidrelétrica de Belo Monte, no Xingu, tema da matéria de seu ex-correspondente no Brasil, Larry Rohter. Já o Washington Post lamentou, em editorial, que apenas dois dos quatro agraciados tenham podido ir à solenidade de entrega do Prêmio Internacional do CPJ. Todos sofrem – em maior ou menor intensidade – as conseqüências de exercer o jornalismo (ou o apoio ao jornalismo) verdadeiramente independentes em locais onde a crítica não é aceita como um requisito fundamental do regime democrático. A repressão não é tão surpreendente em países abertamente fechados, como a China. Mas causa perplexidade em democracias formalmente estabelecidas, como o Brasil. Nelas, a distância entre o formal e o real está se dilatando.

Esse divórcio explica declarações prestadas ao site Comunique-se por Ronaldo Maiorana, que me agrediu em 21 de janeiro. Ele disse que não fui a Nova York porque não quis: “A Justiça do Pará não o impede de sair do País. O Lúcio adora se fazer de vítima”.

É verdade: não há nenhum impedimento legal para minha saída de Belém e do Pará, nem eu jamais disse isso. Mas minha presença constante em Belém é vital. No ano passado, uma saída quase me custou a condenação num dos processos movidos contra mim pelo desembargador (já aposentado) João Alberto Paiva. Minha apelação da sentença foi considerada intempestiva pelas Câmaras Criminais Reunidas. Consegui provar, perante o Superior Tribunal de Justiça, que o pedido de revisão criminal foi protocolado dentro do prazo legal. Como, porém, o recurso especial não foi precedido (porque eu viajava) pelo pré-questionamento da matéria através de embargo, considerado como medida preparatória indispensável pelo ministro-relator, eu podia perder a questão. Fui salvo pela prescrição da sentença. O processo foi arquivado.

O absurdo da situação é que era totalmente procedente minha crítica à decisão do desembargador, em favor do grupo associado à Construtora C. R. Almeida, decisão que continua a ser a única sustentação jurídica à grilagem de terras do Xingu, a maior do planeta. A aparência de perda de prazo na apelação era de uma superficialidade incrível. Bastaria examinar os autos (como fizeram o ministro do STJ e o Ministério Público Federal) para constatar que o recurso era inteiramente tempestivo. Havia uma intrigante retirada dos autos do cartório da 16ª vara criminal pelo representante do Ministério Público a complicar a contagem do prazo, mas havia também uma certidão da escrivã do cartório atestando esse inusitado movimento, que bloqueava o início da contagem do prazo. E todas as razões de direito eram em meu favor. Mas eu teria finalmente perdido minha primariedade, o objetivo imediato de tantos processos criminais, se não houvesse a prescrição.

Aprendi a lição. Decidi me manter no front sempre que houver tiroteio forense mais intenso. Na sexta-feira da semana passada, por exemplo, protocolei cinco peças no Tribunal: três contra-razões de agravo de instrumento, um recurso especial ao STJ e um recurso extraordinário ao STF. Quatro dias depois, mais duas peças. No dia 25, audiência de instrução na 16ª vara, privativa dos “crimes de imprensa”. Sem falar na nova ação com base na lei de imprensa apresentada por Ronaldo Maiorana, que já foi recebida e vai começar a tramitar.

Ele diz, na entrevista ao Comunique-se, que não lhe conferi o direito de resposta para que pudesse expressar sua indignação contra as ofensas que eu teria causado à memória de seu pai e à pessoa de sua mãe. Em primeiro lugar, a matéria a que ele se refere é definida tecnicamente como artigo. O responsável pelo artigo o escreve com base nas informações e no conhecimento que já possui. Não precisa consultar ninguém, já que emite uma opinião, uma avaliação, uma análise. Cabe à pessoa contrariada escrever um artigo ou uma carta em oposição à primeira manifestação. Isso é praxe nas democracias e constitui o oxigênio da imprensa: o debate, a polêmica, a controvérsia. É assim que a opinião pública se forma e a sociedade se instrui, incluindo os contendores.

Ronaldo não fez nem uma coisa nem outra: não me mandou uma carta e não publicou um artigo em seu próprio jornal, incomparavelmente mais poderoso do que o meu. Suas manifestações até agora se limitaram a responder a perguntas formuladas por dois sites de informação. São respostas laterais e limitadas. Eu as contradito, mas Ronaldo se cala. Presumo que por não ter mais o que dizer.

Em segundo lugar, ele devia ser fiel aos fatos. Eu nunca acusei Romulo Maiorana de ser contrabandista. Fiz referência a esse fato em dois contextos: na insólita situação de ele não poder colocar em seu nome a concessão de canal de televisão a ele conferida pelo Ministério das Comunicações, vendo-se obrigado a recorrer ao artifício de atribuir a propriedade da empresa a cinco empregados, tendo como garantia da devolução das cotas um “contrato de gaveta”. O governo que dava com uma mão o canal de televisão ao empresário era o mesmo que, através de outra instância, a dos órgãos de informação, capitaneados pelo sombrio SNI (Serviço Nacional de Informações) o impedia de assumi-la abertamente. Os assentamentos desses órgãos registravam que Romulo fora contrabandista (mas já não era naquele momento), algo público e notório no Pará (foi tema de uma acirrada polêmica com A Província do Pará, em 1973).

Romulo Maiorana se associara ao contrabando devido a duas circunstâncias. Uma, em virtude da legitimidade (ainda que sem a legalidade) do contrabando. O costume tornara esse o recurso habitual que uma sociedade isolada do restante do país, como a paraense antes das estradas de integração nacional, utilizava para se prover de produtos que eram impossíveis ou onerosos de conseguir em outras partes do Brasil. Outra circunstância foi a de casar com a sobrinha do potentado político do Estado, o general Magalhães Barata. O partido dos baratistas, o PSD, tinha duas importantes fontes de finanças: o jogo do bicho e o contrabando. Isso também é público e notório, além de largamente provado a partir de 1964.

Quanto a Déa Maiorana, viúva de Romulo, apenas registrei, nessa remissão ao passado recente, o desafio que ela assumiu, corajosamente, em relação à moral conservadora de sua época, indiferente às reações dos donos da moral estabelecida. Tenho grande admiração por Déa, desde suas origens, passando pela travessia que empreendeu num momento delicado de sua vida e pela posição que assumiu ao lado do marido. Nossa vida é constituída de erros e acertos, quedas e ascensões, misérias e glórias. O que importa é o seu saldo, quando temos condição de submetê-lo a balanço, olhando a trajetória percorrida a partir de uma posição avançada na vida. O balanço de Lucidéa Maiorana é positivo. Ela merece a admiração e o respeito da sociedade paraense.

Essa opinião eu já a expressei várias vezes, em particular e em público. Quando Rosângela Maiorana Kzan me levou cinco vezes sucessivas às barras dos tribunais, fui ao prédio de Déa e lá deixei uma carta, sobre cujo conteúdo mantenho sigilo até hoje. Muito tempo depois, na noite do mesmo dia em que circunstancialmente me encontrei com ela numa banca de revistas da Praça da República e lá tivemos um diálogo duro, mas franco, que terminou sem acordo mas com civilidade e tolerância, entreguei-lhe outra carta reservada. Minha atitude era ditada pelo apreço pessoal que dedico a essa senhora, com quem privei pouco, mas sempre de forma carinhosa e amigável, tendo seu marido como elo da nossa relação e fiador dos nossos juízos recíprocos.

Essas atitudes e o texto da matéria referida como ofensiva pelo filho mais novo de Déa tornam a declaração de Ronaldo Maiorana uma completa insensatez. Seria motivo de irrisão se não contivesse um ânimo belicoso, ofensivo, que continuará a produzir maus resultados. Com suas palavras, ele agride a verdade, a mim e à própria mãe. Não demonstra a sensatez e o equilíbrio que o grave momento atual está a exigir dos personagens desse drama forçado. Não aceitarei que novamente se formem condições para servir de pretexto a agressões. Chega de barbárie.

Tomo essa iniciativa porque a questão já transcendeu os limites paroquiais. É o exemplo de uma anomia que ameaça se expandir no Brasil dos nossos dias, golpeando algumas das bases do regime democrático, que todos queremos ver solidificado em nosso país, maltratado por atos de arbítrio, prepotência e insensatez de uma elite alheia às misérias do seu povo. Uma elite voluntariosa e, no mais das vezes, fútil.

Este jornal vai continuar exercendo o direito constitucional de divulgar os fatos verdadeiros, de analisá-los e de expressar seu pensamento, livre e desimpedido de miasmas e contingências, de caprichos e veleidades. Essas circunstâncias podem ser fortes, em determinado tempo e sob certo espaço. Mas elas passarão algum dia. O que permanecerá é o compromisso com a liberdade, como semente vital para que germine uma sociedade melhor do que esta sob a qual vivemos. Sem donos e sem tutores.

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