quinta-feira, 19 de maio de 2005

"SUB CENSURA"

Márcio Thomaz Bastos

Ainda que o conflito de valores seja natural à democracia, nossa Constituição federal é muito clara ao repudiar a censura. Nos últimos dias, os brasileiros foram de alguma forma afetados por duas decisões judiciais em que seu direito à informação foi desproporcionalmente sacrificado, a pretexto de se proteger a imagem e a honra das pessoas.

Nossa Constituição federal, por ter sido redigida logo após a saída de um período autoritário, foi ampla e taxativa ao enunciar os direitos fundamentais que devem merecer especial proteção em nosso Estado de Direito.

O artigo 5.º assegurou a livre manifestação do pensamento e o amplo acesso à informação, mas também garantiu a inviolabilidade da honra e da imagem das pessoas, o direito de resposta e a indenização por danos decorrentes do exercício abusivo do direito, desde que proporcionais ao agravo sofrido pelo lesado.

A liberdade de expressão é uma das primeiras e mais fundamentais conquistas em face do absolutismo monárquico. Desde Baruch de Espinoza - que reclamava fosse respeitada a liberdade de "cada um pensar o que quiser, e de dizer aquilo que pensar" - pensadores, políticos e artistas já pugnavam pela possibilidade de se exprimirem sem censura. Foi apenas durante as revoluções liberais, contudo, que tal direito foi reconhecido e garantido àqueles que quiserem manifestar com liberdade suas opiniões, inclusive contra o Estado.

Durante o século 20, os textos normativos, das Constituições às declarações de direitos, passaram a se preocupar também com o direito à informação. A proteção ao emissor e às idéias foi estendida aos destinatários das mensagens livremente expressas. O Estado de Bem-Estar Social ampliou sua tutela sobre a comunicação: além de se garantir a livre circulação de informações, buscou-se assegurar que as de interesse público alcançassem os seus destinatários de forma plural, com conteúdo verossímil e verificável.

A plena vigência do regime democrático depende diretamente destas duas garantias: por um lado, a liberdade de expressão, para que nenhuma espécie de arbítrio ou domínio se imponha sobre aqueles que queiram exprimir suas idéias; por outro, o livre acesso às informações, para que a sociedade possa opinar e participar do processo decisório com diferentes fontes de informação que assegurem uma ampla visão dos complexos problemas da sociedade contemporânea.

A liberdade de expressão pode, no entanto, dar ensejo a abusos. No Estado de Direito, o único Poder da República que pode interpretar determinada notícia como abuso ao direito da inviolabilidade da imagem, da honra, da dignidade ou da privacidade e determinar uma correção ou reparação, normalmente a posteriori, é o Judiciário.

No entanto, as decisões judiciais sobre as informações contidas na última obra do jornalista Fernando Moraes e no noticiário sobre a recente crise política do Estado de Rondônia foram tomadas a priori, restringindo o direito do cidadão à informação.

Em minha opinião pessoal, "sub censura", não deveria ter sido esta a decisão dos magistrados, nada obstante a retirada da ação por parte dos deputados de Rondônia. A melhor interpretação constitucional indica que eventuais abusos ocorridos nesses casos poderiam ser coibidos, mas apenas a posteriori. O bem maior a ser protegido nesses casos é claramente o acesso à informação.

O que não se pode admitir é o cerceamento prévio do direito à informação, que protege o interesse da sociedade de receber notícias objetivas, verdadeiras, pluralistas e completas, especialmente sobre assuntos de interesse público, que exigem total transparência. Esse é, com o desenvolvimento de novas tecnologias e na sociedade de massa, o sentido preponderante da evolução da idéia de liberdade de expressão.

Nos casos concretos, tanto no livro Na Cova dos Leões, de Fernando Moraes, quanto na reportagem da TV Globo sobre os escândalos políticos dos deputados de Rondônia, o bem maior a ser protegido é o da informação sobre fatos públicos, sobre nossa História e nossa vida política. Nunca estará afastada a possibilidade de aqueles que se sentirem ofendidos pelas informações veiculadas recorrerem ao Poder Judiciário para pleitearem reparações ou correções. O que nos deve preocupar nesses dois casos é a sombra da censura, que, pairando sobre o Brasil, empobrece a nossa capacidade crítica, macula a República e afronta o Estado de Direito.

Márcio Thomaz Bastos, advogado criminalista, é ministro de Estado da Justiça

Fonte: O Estado de S. Paulo

Um comentário:

O Malfazejo disse...

Márcio Thomas Bastos diz tudo na coluna, e é preciso que esses dois casos sejam tediosamente lembrados à população