domingo, 15 de maio de 2005

MARINA

Moisés Diniz*

Não seremos livres enquanto o eco de nossa voz brotar do preconceito. Os povos indígenas, os negros, as mulheres e até as minorias sexuais conquistaram solidariedade para o seu abandono e a sua luta. Todavia, os pobres continuam num maldito isolamento de classe. Expropriados, a sós, seviciados pela fome, abandonados e cuspidos, cotidianamente, pela avassaladora indiferença das elites. Aos pobres nenhuma solidariedade, apenas preconceito e mais preconceito. De nossa parte, que dizemos estar comprometidos com eles, nos denunciam concepções preconceituosas que herdamos do cativeiro. Quereis um exemplo?

Antes trarei um do mundo dos mortos. Lá, dentre os vários castigos infernais, há uma seção onde as almas apenadas ficam submersas num lago de larvas incandescentes e apodrecidas. Naquele terrível suplício, os pecadores tentam colocar o rosto de fora para respirar. Quando assim tentam, uma lâmina de aço, fria e cortante, passa rente à superfície, obrigando-os a voltar às profundezas apodrecidas do lago. Entre perder o pescoço ou suportar a podridão, eles optam pela última. Assim ocorre, no nosso tempo, com os pobres que ousam derrotar o anonimato de sua classe e colocar os pés onde só as elites trafegam. Um pobre que ouse fazer isso sofre a mais brutal interdição! Das elites não esperamos diferente. O que nos desanima é ver a lâmina do preconceito, pior que no mundo dos mortos, repousando nas mãos dos pobres e sendo utilizada contra eles mesmos.

Esta lâmina domina o nosso tempo como uma doença contagiosa e mortal. Eis o exemplo! Uma menina de seringal, negra, pobre e analfabeta, se por intervenção de Deus ou dos homens, rompeu o isolamento de sua classe e fez-se senadora da República. Do acreano mais reacionário ao Boris Casoy, ela sofre achincalhe. Falsa seringueira! Senadora das ONGs! Negrinha! Senadora que boicotava as BRs. Ministra que não trouxe dinheiro para o Acre e, por cima, fica atrapalhando o Lula e o seu desenvolvimentismo! Marina atrapalha, Palloci ajuda! Esse é o discurso dos novos jagunços, que usam paletó, caminhonetes e perfume francês! Nunca veio dessa gente um elogio, um reconhecimento. Quero abrir este tema opinando sobre a nossa própria concepção e reação. A reação dos pobres sobre o achincalhe que sofre uma representante de sua própria classe, uma classe expropriada nos seus direitos mais elementares. Que fazem os pobres, que fazemos nós, para romper a barreira do preconceito? Será que não temos o direito de tocar a luz e a magia do poder que protege as elites? Será que a Marina é essa mulher má, inimiga do desenvolvimento? Será que nós, filhos também da classe expropriada, não temos a capacidade de perceber o que querem os velhos donos do Acre, quando achincalham e agridem a senadora e ministra Marina? Até quando os pobres alimentarão o seu tempo com a versão daqueles que os massacram? Talvez porque, dentre os que estão lendo este ensaio, poucos se considerem filhos dessa classe, a classe que envergonha!

O preconceito brota no cotidiano, invisível, intransigente e, às vezes, doce. Diálogos de orgulho e diálogos de vergonha. Diálogos para descobrir as origens e a importância ou a insignificância: - Quem é o seu pai? - É o Dr. Exmo. Sr! - Ah, eu conheço, gente boa, homem de trabalho! - E o seu? - É o Pedro Augustinho de Souza! O diálogo morre ali, onde nasce a vergonha de perguntar quem é mesmo Pedro Augustinho de Souza! Eu, pessoalmente, passei, várias vezes, por esse constrangimento. Meus interlocutores não sabiam quem era o meu pai. Aqueles momentos alimentavam o meu preconceito contra mim mesmo, minhas origens e a minha classe. Descobri, mais tarde, que, ao envergonhar-me das minhas origens, eu estava afrontando uma história milenar, construída no confronto mortal de meus ancestrais com o anonimato e a exclusão.

Utilizo esta pequenina cena de uma tragédia cotidiana para perguntar: Marina, quem é o teu pai? Um homem do povo, analfabeto, como a sua filha até os 16 anos, mãos calejadas, frágeis, embora rústicas, suportando o peso da busca do alimento diário, na floresta e nos rios, esta riqueza indomável que a nobre senadora e ministra luta para preservar e distribuir entre os filhos da sua classe. Filho também da classe expropriada, Pedro Augustinho de Souza, varava as noites e as madrugadas, enfrentando cobra grande e poraquês, "atrás" da sobrevivência e do sonho que ilumina a penumbra e a solidão dos seringais amazônicos. Às jaçanãs, tapiris, remansos e embaúbas "seu" Augustinho sonhava: "Minha filha vai ser doutora!" Enfrentando e destruindo o preconceito, tornou-se senadora.

Nada mais que isto, cidadão! Marina ergueu-se, como uma árvore teimosa que não aceitou viver submersa nas águas do rio. É o exemplo para os seus irmãos que amargam no anonimato das periferias e do preconceito. Tantos outros a seguem! Alguns, feitos cotia acuada sob a lanterna do caçador, perderam a vida para o preconceito. Este, doce como veneno e vinho, fez-se pólvora, chumbo e bala nas mãos de um jagunço sem alma. Marina venceu mais de um preconceito: mulher, negra, analfabeta, extrativista, pobre e de esquerda. Restou-lhe a fé que, como uma tempestade, impôs ao preconceito derrota colossal.

Ensaiei, aqui, meu desejo de mudar o mundo, que vislumbro nas mãos de Marina. Um camponês dirigindo a nação, um operário, um negro, um índio, uma mulher. Não foi uma opinião de partido, de política, de eleição, constitui-se num tributo pessoal às minhas próprias origens. Marina simboliza, como marca ardente na pele do gado e na insensibilidade das elites, a ressurreição que não necessita de morte. É possível não morrer, não ajoelhar-se à indignidade do anonimato que exclui, derrotar o preconceito, manter-se limpo, não envergonhar-se das origens. Marina desobedeceu a regra do silêncio e da submissão e, por conta da ousadia, recebe das elites, como uma sentença divina, a condenação: "por tua desobediência, teu marido te subjugará e teu parto será em dor!" E, como ninguém reage, qualquer jagunço social pode afirmar: "teu marido é o capital, se ele não pode te subjugar, encontrará um meio de te difamar"!

* Moisés Diniz, deputado estadual (PCdoB-AC), é dono do blog Deputado Aprendiz

Fonte: A Gazeta

2 comentários:

Anônimo disse...

O orgulho que levo em minha vida é o orgulho de ter residido no Acre e de ter convivido com tantas pessoas brilhantes (dos mais humildes aos mais ilustres). Aprendi a amar a "terrinha".. agora, por exemplo, saudosa, lembro minhas conversas com os saudosos carregadores de bagagens no Aeroporto Presidente Médici (O Paraguai, que contava suas estórias de como sobreviveu à escravidão enquanto índio e depois como foi resgatado pelos "acreanos" em terras bolivianas na Revolução Acreana. O Paulistinha, que era tão disposto e simpático e sabia muito das coisas, o apaixonado torcedor se me lembro bem... do Juventus. O Sr. Gervásio, que sorrindo, que me tratava como filha e dizia vai amar este lugar.).
Ao ler o que o deputado aprendiz escreveu me emocionou.
Conheci tantas Marinas, Paraguaios, Paulistinhas e Gervásios...ouvi muito e aprendi muito.
Conheci você Moisés lutando e ajudando.
Homenagear a Marina é justo! Muito justo.
Representa homenagear a todos os que amam verdadeiramente a nossa terra e lutam por dignidade e ser cidadão do Acre.
Na verdade somos carregadores de bagagens.
Parabéns.

Anônimo disse...

No Site Notícias da Hora tem a seguinte nota:

Embarcação vira com 72 bois em Assis Brasil

RIO BRANCO, AC – Homens do Corpo de Bombeiros estão no rio Macurinã, na fronteira Brasil e Peru na cidades de Assis Brasil e Iñapari, para tentar resgatar mais de 72 bois. Os animais estavam em um barco que fazia a travessia quando uma lancha passou em alta velocidade fazendo um forte banzeiro, virando a embarcação. Até agora nenhum animal foi resgatado..

Fonte: Da redação

Pelo que conheço da região, não existe esse rio Macurinã na fronteira do Brasil com o Peru. O maior rio de lá é o rio Acre, que nessa época do ano está prativamente seco. Também não sei se tem barco que navegue nele com a capacidade para carregar 72 bois e, como o rio está meio seco, seria difícil uma lancha fazer banzeiro.