A agricultora Maria Deuzimar da Silva Vieira, 59 anos, irmã mais velha
da presidenciável Marina Silva, 56, é casada, mãe de quatro filhos e avó
de sete netos. Ela mora na colônia Vista Alegre, de 96 hectares, a 17
quilômetros da margem da BR-364, numa área que fazia parte do antigo
seringal Bagaço, onde Marina nasceu.
Deuzimar conta que Marina contraiu muitas malárias na infância, que
evoluíram para hepatites, o que a deixou muito frágil para o pesado
trabalho no corte de seringa.
- Antes de sair pra morar em Rio Branco, como empregada doméstica,
ela chamou meu pai e falou: “Pai, eu gostaria que o senhor permitisse.
Eu quero ir estudar na cidade”. Meu pai perguntou: “Minha filha, é isso o
que você quer?”. (Pausa para choro). Ela disse: “Sim, meu pai, é isso
o que eu quero”. Aí meu pai falou: “Minha filha, não tenho nem o
dinheiro da passagem de ônibus pra lhe dar. Mas você espera. Vou vender
a borracha que conseguir produzir e lhe dou o dinheiro no final da
semana pra você pagar a passagem de ônibus”. E assim ela fez. E assim
ela saiu de nossa casa pra ser doméstica. Até chegar onde ela chegou
foram muitas lutas e batalhas. Como diz a Bíblia, até aqui o Senhor nos
ajudou – lembra Deuzimar, que é da Assembléia de Deus há mais de 30
anos, muito antes da conversão de Marina.
O que mais Deuzimar admira na irmã é a inteligência, suas “ideias
novas e diferentes” e considera que ela “é uma pessoa que veio ao mundo
com a missão de fazer alguma coisa”.
- Ela é ex-seringueira, filha de ex-seringueiro. No Acre, seringueiro
sempre foi a classe mais humilde da sociedade. O seringueiro era o nada
do nada. Na nossa região, seringueiro sempre foi pejorativo.
Quando
alguém quer humilhar outro, chama de seringueiro – diz, lembrando que,
embora os seringueiros fossem os que produziam riqueza, eram explorados,
escravizados e estigmatizados.
Na Amazônia, mulheres não costumavam cortar seringa. Deuzimar, Marina
e Lúcia tiveram que aprender a produzir borracha para ajudar Pedro
Augusto, o pai delas, que havia contraído um débito com o ex-patrão.
Durante três anos, a família viveu em Manaus e Belém, mas a vida se
tornou mais difícil do que no seringal e eles pediram dinheiro
emprestado ao patrão para pagamento das passagens de navio de volta ao
Acre.
- Quando voltamos pro Acre, Marina tinha dez anos. Voltamos e fomos
cortar seringa. Minha mãe era muito determinada e falou pro meu pai que
ele não ia ter condição, cortando seringa sozinho, de pagar ao patrão o
valor das passagens do navio que nos trouxe. Ela mandou ele ensinar as
filhas a cortar seringa. Minha mãe não aceitou a afronta dos que diziam
que meu pai não ia conseguir pagar a conta. Meu pai, minhas irmãs e eu,
debaixo da mata, enfrentamos muito pé de vento, temporal, vendo a mata
cair, mas sobrevivemos. Pagamos a conta ao patrão e estamos aqui, graças
a Deus.
Na noite desta quarta-feira (11), na casa que Marina possui em Rio Branco, Deuzimar recebeu o
Blog da Amazônia
para conceder uma entrevista exclusiva em que revela detalhes das
dificuldades enfrentadas pela família e sintetiza as superações da irmã:
- Marina é um fenômeno que já ressuscitou várias vezes.
Abaixo, os melhores trechos da entrevista:
Vida no seringal – A gente vivia no antigo seringal
Bagaço, local bem difícil. Não tinha rodagem e a gente sobrevivia de
cortar seringa e de quebrar castanha. A produção era transportada no
lombo de animais. Da nossa colocação até à sede do seringal, na beira do
Rio Acre, a viagem chegava a demorar três dias dentro da mata. A gente
entregava a produção para o patrão e recebia em troca o aviamento para
continuar vivendo e produzindo mais borracha e castanha. Apesar de ser
difícil, a gente achava bom. A gente era feliz. Cortei seringa dos 14
aos 19 anos junto com minha irmãs. Não era comum mulheres no corte de
seringa. Por isso, no Acre, existe gente que até duvida quando lê que
Marina foi seringueira. Acontece que meu pai recebeu carta de um parente
dizendo que a vida era melhor em Manaus e ele mudou para lá com a
família quando éramos crianças. Meu pai passou a trabalhar como vigia, a
cavar poços e a fazer outros serviços pesados pra conseguir sustentar a
família em Manaus. A vida ficou mais difícil do que no seringal. Outro
parente escreveu dizendo que a vida em Belém era melhor e mudamos para
lá. A vida continuou difícil e meu pai decidiu voltar para o Acre depois
de três anos. Mas ele não tinha dinheiro pra pagar as passagens de
navio. Nosso ex-patrão pagou as passagens e nós voltamos pro seringal
Bagaço com uma dívida enorme. Todo mundo dizia que a gente nunca ia
conseguir pagar. Foi quando minha mãe, Maria Augusta, convenceu meu pai,
Pedro Augusto, a ensinar a mim, Marina e Lúcia a cortar seringa. Marina
começou no corte de seringa com dez anos. Meu pai produzia uma pela de
borracha por semana. Com a ajuda das filhas, passamos a produzir três
pelas de borracha por semana e meu pai logo conseguiu pagar a dívida.
Nós passamos a ser consideradas fenômenos na região. “O Pedro Augustinho
tem três filhas que cortam seringa. Pois não é que eles pagaram a conta
cortando!”, diziam as pessoas com admiração. Uma coisa é ser filha de
seringueiro, mas nós pegamos em facas para o corte da seringa. Meus pais
tiveram onze filhos, mas três morreram. Estão vivos sete mulheres e um
homem.
Menina ambientalista – Nossa mãe, Maria Augusta,
morreu muito jovem, aos 36 anos. Eu tinha 17 anos e a Marina 14. Sempre
lembro de marina como uma irmã inteligente, amorosa, ativa e feliz.
Quando o seringal Bagaço foi dividido em lotes, nós passamos a morar
perto da BR-364. Essa divisão acarretava a diminuição das estradas de
seringa. Quando a gente se preparava pra mudar, Marina era um menina e
sugeriu a meu pai que a gente plantasse um seringalzinho ao redor de
casa. Sugeriu que a gente colhesse as sementes de seringueiras e
plantasse no novo lugar onde a gente ia morar. Isso foi em 1972. E assim
nós fizemos. É por isso que eu acho que a Marina já nasceu com essa
ideia de ecologista, de defensora do meio ambiente. Isso ela já trouxe
do berço. Naquele tempo ninguém falava em preservação. Ela era um menina
e já estava preocupada em replantar seringueiras em volta de nossa nova
casa para ajudar no sustento da família. Ela realmente plantou muitas
seringueiras perto de casa e aguava, cuidava. Muitas morreram, mas até
hoje, depois de 40 anos, uma parte daquelas seringueiras plantadas por
ela estão lá, frondosas, como provas do que estou contando.
Coisa de nascença – Às vezes, eu fico na frente da
TV, vendo Marina falando, e fico dividida entre o que ela está dizendo e
as lembranças de nossa vida no seringal. Dá até pra duvidar que seja
ela, depois de tudo o que ela já enfrentou nessa vida. Passados tantos
anos, lembrando da menina que colheu sementes e plantou as seringueiras,
a gente se dá conta de que ela já tinha essas ideias que ela defende
como ecologista ou ambientalista. Antes, não dava pra entender. Só
depois, quando a gente começou a ver a derrubada da floresta, o
desmatamento, a destruição da natureza, é que a gente passou a entender
que tinha fundamento a ideia dela, ainda criança, de plantar um seringal
perto de casa. Não foi ninguém que influenciou. Acho que é um dom, uma
coisa de nascença, de alguém preparada para o que faz.
Os “brabos”- Meu pai conta que veio do Ceará, como
Soldado da Borracha, mais ou menos em 1942. Ele nasceu em Messejana.
Quando veio, deixou lá nossa avó Júlia, uma irmã, a Matilde, que é uma
pessoa especial e que até hoje a gente cuida dela. Minha mãe, o pai dela
e os irmãos logo vieram, também do Ceará. As duas famílias não se
conheciam, mas vieram para o mesmo seringal Bagaço. Eram os “brabos”,
como eram conhecidos os nordestinos que chegavam ao Acre pra cortar
seringa. Aqui, meu pai conheceu Aurélio Rocha. Os dois trabalhavam
sonhando em buscar a família que haviam deixado no Ceará. Trabalharam
muito para conseguir isso. Naquele tempo, poucos seringueiros conseguiam
se livrar dos débitos no barracão do seringal. Eles conseguiram ficar
com saldo, pagaram as passagens de navio e trouxeram suas famílias. Foi
quando meu pai conheceu minha mãe, irmã do amigo dele, se casaram e
tiveram filhos. Meu pai nunca mais quis casar depois que minha mãe
morreu. Ele assumiu o papel de pai e de mãe da família.
Júlia e Augusta - Vovó Júlia foi uma pessoa que
marcou a vida de toda a nossa família. Meu pai trouxe a mãe dele, fez um
pequena casinha, perto da nossa. Na casa dormiam ela e Matilde. Muito
amorosa, Marina ficou logo muito apegada à vovó Júlia. Acho que ela
percebeu que lá era menos gente na hora de dormir e começou fazer
companhia. Começou dizendo pra minha mãe que ia dormir com a vovó e com a
tia. E ia. Passava dois ou três dias e pedia de novo. Aí minha mãe não
deixava. Passava mais uns dias, voltava a pedia pra dormir lá e assim
foi ficando direto com a vovó Júlia e com a Matilde. Elas viviam fazendo
bonecas de pano, fazendo roupas e dando nomes para as bonecas. A maior
perda de nossas vidas foi quando minha mãe morreu. Enquanto ela estava
viva, nada para nós era difícil. A gente era muito feliz. Todo peso foi
perder nossa mãe.
Passagem de ônibus – Marina saiu do seringal porque
se sentia doente. Ela não aguentava mais trabalhar no corte de seringa e
queria estudar e trabalhar na cidade para ajudar o pai de alguma
maneira. Ela queria fazer outra coisa porque havia sofrido muita malária
e isso deve ter virado as hepatites que teve. Quando criança, teve
muitas doenças, era muito frágil. Antes de sair pra morar em Rio Branco,
como empregada doméstica, ela chamou meu pai e falou: “Pai, eu gostaria
que o senhor permitisse. Eu quero ir estudar na cidade”. Meu pai
perguntou: “Minha filha, é isso o que você quer?”. (Pausa para choro).
Ela disse: “Sim, meu pai, é isso o que eu quero”. Aí meu pai falou:
“Minha filha, não tenho nem o dinheiro da passagem de ônibus pra lhe
dar. Mas você espera. Vou vender a borracha que conseguir produzir e
lhe dou o dinheiro no final da semana pra você pagar a passagem de
ônibus”. E assim ele fez e ela saiu de nossa casa pra ser doméstica em
Rio Branco. Até chegar onde ela chegou foram muitas lutas e batalhas.
Como diz a Bíblia, até aqui o Senhor nos ajudou.
O nada do nada – Marina é uma pessoa preparada, com
ideias novas e diferentes. É a esperança minha e de milhões de
brasileiros. O que mais admiro nela é a inteligência, a capacidade que
ela tem de lidar com qualquer coisa. É um dom dado por Deus. Ela é uma
pessoa que veio ao mundo com a missão de fazer alguma coisa. Ela é
ex-seringueira, filha de ex-seringueiro. No Acre, seringueiro sempre foi
a classe mais humilde da sociedade. O seringueiro era o nada do nada. A
gente fica até sem entender depois de ver a Marina passar por tudo o
que ela já passou e chegar aonde ela já chegou. Na nossa região,
seringueiro sempre foi pejorativo. Quando alguém quer humilhar outro,
chama de seringueiro. Embora o seringueiro fosse quem produzia a
riqueza, ele era explorado, escravizado e estigmatizado. A vida mais
difícil que se viu aqui foi a vida de seringueiro. É muito significativo
que uma ex-seringueira esteja disputando a Presidência da República.
Tenho muita satisfação disso e peço muito a Deus para conduzi-la e
protegê-la.
Vida de colona- O Bagaço hoje não é mais um
seringal. Ele foi dividido em pequenas áreas. Foi colonizado, cada um
tem seu pedaço de terra, mas não tem mais produção de borracha. Existe
pouca floresta, muita pastagem. O meu lote mede 96 hectares. Planto
banana, melancia, mamão, pimenta-de-cheiro e crio galinhas. Parte da
produção vai pra Ceasa, em Rio Branco. Eu e minha irmã Aurilene somos as
únicas da família que continuamos trabalhando na zona rural. Nós nunca
quisemos mudar pra cidade. Acho que aquela experiência do meu pai, de
ter mudado para Manaus e Belém me marcou. Eu sempre quis ficar onde
nasci. Me sinto bem lá. Nunca senti vontade de sair.
Biografia- Eu estava falando para minha família que
não ia conseguir dar entrevista sem chorar. Acho que não ia ficar bacana
chorar nessa hora. Quando vejo aquele livro e leio na capa “Marina – a
vida por uma causa”, acho tão real. Eu sei o que Marina já viveu e
sofreu. 'A vida por uma causa'. Isso é muito forte. Ela tem uma causa a
cumprir. Se não fosse isso, sabendo o que sei, do que ela já passou,
Marina não estaria mais entre nós. Marina tem uma missão e sua vida tem
sido poupada porque tem algo a realizar. Ela tem uma missão a cumprir.
Marina tem uma força que não consigo explicar. Quando tudo parece
perdido, ela diz: “Calma, tem jeito”. Sempre foi assim. Isso me
emociona. Ela encontra saída para as maiores dificuldades. Não invente
ponto fraco pra ela nem pra ninguém. A Marina é um fenômeno que já
ressuscitou várias vezes.
A neguinha - Quando Marina foi candidata à deputada
constituinte, acho que em 1986, a gente nem tinha rádio lá no Bagaço.
Não via a hora do dia amanhecer e receber alguma notícia do resultado da
eleição. Aí nos paramos na casa de uma pessoa pra saber se ela tinha
ganhado ou não. A gente ia fazer uma viagem naquele dia e paramos na
casa de um senhor que a gente não tinha costume de frequentar. Paramos
lá porque ele tinha rádio. Logo as pessoas da casa começaram a falar
sobre eleição, quem ganhou, quem perdeu. O meu coração batia tão alto
que dava para escutar. Eu me lembro como se fosse hoje quando o dono da
casa falou: “Eu fiquei com pena daquela neguinha. Tantos votos que ele
recebeu, mas não se elegeu”. Ele morava lá há pouco tempo e não sabia
que eu era irmã da neguinha. (Pausa para choro). Não houve preconceito
dele. Fiquei triste pela notícia. Eu sabia que ele estava se referindo à
Marina, sabia que a neguinha tinha perdido a eleição para deputada.
Aquilo me deixou muito triste. Quando a encontrei, ela não estava
triste. Ela disse: “É assim mesmo, é só o primeiro passo”. E foi. Depois
ela foi eleita a vereadora mais votada, a deputada estadual também
mais votada e foi eleita e reeleita senadora, foi ministra, fico famosa
no mundo inteiro. Mas quem conhece minha irmã sabe que nada disso fez
ela mudar. Ela continua a mesma pessoa na família e com os amigos. Ela é
muito pé no chão.
Tristeza e alegria – O dia mais triste da minha vida
foi quando ela ficou internada num país estrangeiro e lá ela fez um
tratamento muito delicado. (Pausa para choro). A gente chegou a pensar
que ela não fosse mais voltar. E o momento mais alegre foi quando ela
chegou viva. O momento mais triste foi pensar que ela não voltaria mais e
o momento de maior alegria foi quando ela chegou.
Um ovo para alimentar sete filhos – Nós somos
humildes, pobres, mas a nossa vida já foi muito pior. Tem gente que
pensa que a Marina não ajuda a família só porque continuamos humildes,
pobres. Dizem isso para atacar ela. Nós estamos bem. As pessoas inventam
essas mentiras, mas não procuram ajudar a quem realmente necessita. Nós
trabalhamos, nos sustentamos. Faço até dieta para emagrecer. Eu vi
minha mãe alimentar sete crianças com um único ovo. Alguém até já me
perguntou a receita. É muito fácil: pega uma panela, põe no fogo com um
litro de água, adiciona um pouco de sal, um pouco de óleo ou banha, umas
palhinhas de cebola, quebra o ovo dentro quando a água estiver
fervendo, depois despeja o caldo numa bacia com farinha e mistura. Está
pronto o pirão com que nossa mãe chegou a alimentar sete filhos. A gente
passou por isso quando saímos do seringal pra morar em Manaus e Belém.
Teve dia de acontecer isso. No seringal a gente vivia farto. Antes de
sair do Bagaço, a nossa família nunca tinha passado fome. A vida de
seringueiro era difícil, mas todo dia a gente tinha o que comer. Foram
quase três anos muito difíceis no Amazonas e no Pará. Quando voltamos
pro Acre, Marina tinha dez anos. Voltamos e fomos cortar seringa. Minha
mãe era muito determinada e falou pro meu pai que ele não ia ter
condição, cortando seringa sozinho, de pagar ao patrão o valor das
passagens do navio que nos trouxe. Ela mandou ele ensinar as filhas a
cortar seringa. Minha mãe não aceitou a afronta dos que diziam que meu
pai não ia conseguir pagar a conta. Meu pai, minhas irmãs e eu, debaixo
da mata, enfrentamos muito pé de vento, temporal, vendo a mata cair, mas
sobrevivemos. Pagamos a conta ao patrão e estamos aqui, graças a Deus.