Jorge Luís Borges
Tantos anos fugindo e esperando e agora o inimigo estava em minha
casa. Da janela, vi-o subir penosamente pelo áspero caminho da colina.
Ajudava-se com uma bengala, com uma torpe bengala que em velhas mãos não
podia ser uma arma porém um báculo. Custou-me a perceber o que
esperava: a débil batida na porta. Não sem nostalgia, olhei meus
manuscritos, meu borrão semiconcluído e o tratado de Artemidoro sobre os
sonhos, livro um tanto anômalo aí, uma vez que não sei grego. Outro dia
perdido, pensei. Tive de forcejar com a chave. Receei que o homem
desfalecesse, porém deu uns passos incertos, soltou a bengala, que não
tornei a ver, e caiu em minha cama submisso. Minha ansiedade o tinha
imaginado muitas vezes, mas só então notei que ele se parecia, de um
modo quase fraternal, com o último retrato de Lincoln. Seriam as quatro
da tarde.
Inclinei-me sobre ele para que me ouvisse.
- A gente crê que os anos passam para si - lhe disse - mas passam
também para os demais. Aqui por fim nos encontramos e o que ocorreu
antes não tem sentido.
Enquanto eu falava, ele tinha desabotoado o sobretudo. A mão direita
estava no bolso do paletó. Algo apontava para mim e eu percebi que era
um revólver.
Disse-me então com voz firme:
- Para entrar em sua casa, recorri à compaixão. Tenho-o agora à minha mercê e não sou misericordioso.
Tentei umas palavras. Não sou um homem forte e só as palavras poderiam salvar-me. Atinei em dizer:
- É verdade que faz tempo maltratei um menino, mas você já não é
aquele menino nem eu aquele insensato. Além disso, a vingança não é
menos vaidosa que o perdão.
- Precisamente porque já não sou aquele menino - replicou-me - tenho
de matá-lo. Não se trata de uma vingança, mas de um ato de justiça. Seus
argumentos, Borges, são meros estratagemas de seu terror para que eu
não o mate. Você já não pode fazer nada.
- Posso fazer uma coisa - respondi-lhe.
- O quê? - perguntou-me.
- Despertar.
E assim o fiz.
Poeta e escritor argentino, Jorge Luís Borges nasceu em 24 de
agosto de 1899 em Buenos Aires e faleceu em 14 de junho de 1986.
Ganhador de inúmeros prêmios literários e indicado ao Prêmio Nobel de
Literatura, é considerado como um dos melhores escritores de língua
espanhola. Desenvolveu sua obra expressando o fantástico através de
símbolos universais, tais como labirintos, animais, alquimia, cabala e
muitos outros objetos.
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