Euclides da Cunha
O Purus e o Juruá abriram-se há muito à entrada dos mais díspares forasteiros - do sírio, que chega de Beirute, e vai pouco a pouco suplantando o português no comércio do "regatão"; ao italiano aventuroso e artista que lhes bate as margens, longos meses, com a sua máquina fotográfica a colecionar os mais típicos rostos de silvícolas e aspectos bravios de paisagens; ao saxônio fleumático, trocando as suas brumas pelos esplendores dos ares equatoriais. E, na grande maioria, lá vivem todos; agitam-se, prosperam e acabam longevos.
Registre-se êste caso. Em 1872, Barrington Brown e William Lidstone percorreram o Baixo-Purus, até Huitanaã, embarcados na lancha Guajará, sob o comando do Capitão Hoefner, a german speaking both english and portuguese in addition, consoante explicam os dois viajantes no interessante livro que escreveram.
Há trinta e cinco anos...
E o Capitão Hoefner lá está, eterno comandante de lancha, a mourejar sem descanso sôbre aquelas águas malditas, onde fervilham os piuns sugadores, os carapanãs emissários das febres, e se espalmam, derivando à feição da correnteza insensível, os mururés boiantes, de flôres violáceas recordando as grinaldas tristonhas dos enterros. Mas não agourentaram o germano.
Vimo-lo, em fins de 1905, na confluência do Acre. É um velho vivaz e prestadio, diligente e ativo, de rosto aberto e rosado, emoldurado de cabelos inteiramente brancos. Se aparecesse em Berlim, mal lhe descobririam na pele, de leve amorenada, o sombrio estigma dos trópicos.
Multiplicam-se os casos dêste teor, acordes todos na extinção de uma lenda.
Resta, talvez, à teimosia no propagá-la, um derradeiro argumento: aquêles caboclos rijos e êsse saxônico excepcional não são efeitos do meio; surgem a despeito do meio; triunfam num final de luta, em que sucumbiram, em maior número, os que se não aparelhavam dos mesmos requisitos de robustez, energia e abstinência.
(*) Trecho de "À Margem da História", de Euclides da Cunha, no qual o engenheiro e escritor expõe seus estudos sobre a Amazônia, a partir do trabalho como chefe da Comissão Brasileira de Reconhecimento do Alto Purus. A comissão partiu de Manaus no dia 5 de abril de 1905 para as nascentes do Rio Purus, onde chegou em 14 de agosto. Em outubro, regressou a Manaus e concluiu os trabalhos em 16 de dezembro. Obras de Euclides da Cunha podem ser baixadas em Coletivo Euclidiano ou na Biblioteca Virtual da USP.
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