DIOGO BERCITO
Folha de S. Paulo
Madri
Nascida em Rio Branco (Acre), Marie Claire Feghali, 35, vive atualmente em Sanaa, capital do Iêmen.
Ela é porta-voz do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, organização que auxilia a população local, vítima de bombardeios de uma coalizão internacional contra a milícia xiita houthi liderada pela Arábia Saudita.
O país, desestabilizado por conflitos internos, é hoje também palco para disputas entre a Arábia Saudita e o Irã.
"Nunca foi fácil", diz ela à Folha.
Leia seu depoimento.
Estou há quase dois anos no Iêmen. Minha missão termina no dia 5 de maio, mas não sei como vou fazer para sair daqui.
Hoje está tudo fechado. Nada entra ou sai. Estamos presos desde que a coalizão internacional começou com os bombardeios, em março.
O Iêmen sempre foi um lugar difícil.
Nunca foi fácil morar aqui. Depende do dia. Se o conflito é longe, não sentimos tanto, mas o sofrimento da população é o mesmo.
No começo, as explosões aconteciam à noite. Agora é a qualquer hora. Não há combates em Sanaa, apenas os aviões. Em outras cidades, como Áden, não há quem retire os cadáveres das ruas.
Normalmente, no nosso trabalho, viajamos a todos os lugares. Mas, agora, nós não conseguimos nos deslocar. O único aeroporto em funcionamento hoje é o de Sanaa.
Passamos o dia inteiro no escritório. Só vamos para casa para tomar banho e descansar. Em alguns dias trabalhamos por 20 horas, e então não conseguimos dormir, devido aos bombardeios.
Não há vida normal há muito tempo. É muito difícil para todo o mundo. Tenho colegas que tiveram de sair de casa e estão preocupados. Seus filhos não vão à escola.
Nós, os estrangeiros, vamos embora um dia. Não vamos ficar aqui por toda a vida. Mas os cidadãos estão presos. Eles não podem sair.
Eu trabalho com uma organização internacional que me protege. Tenho comida e tenho também a esperança de um dia voltar ao meu país, onde há paz e onde quero viver por toda a vida.
Temos contato direto com a população. Não somos como os demais estrangeiros, que foram embora quando começou a guerra. Pelo contrário. Com o conflito, reforçamos nossa posição aqui.
RUÍDO
O que mais me impressionou, durante esse período, foram os nossos esforços em trazer o material médico por avião. Isso foi muito difícil.
Visitávamos hospitais e víamos que as pessoas estavam morrendo por falta de medicamento. Era pesado para os nossos corações.
A cada vez que ouvíamos um avião passar, era para um bombardeio. Então, quando ouvi o som do avião pousando com material médico, foi um dos dias mais felizes da minha vida. Era o ruído da esperança. Me lembrei das crianças nos hospitais, contando com a gente.
Trazer medicamentos é a nossa primeira resposta. Distribuímos aos hospitais, onde há muitos feridos. Não há eletricidade, água, comida.
Meu marido mora no Acre, onde eu nasci. Sou brasileira de mãe libanesa. Tenho essas duas nacionalidades. Estudei no Líbano e na França.
Trabalho com o CICV há cinco anos. Minha primeira missão foi na Tunísia. Depois, Iraque, Líbia e Iêmen. Na Tunísia, vi toda a história da Primavera Árabe. Foram momentos históricos -nem sempre bons, mas históricos.
Adoro meu trabalho. Posso salvar vidas. Quero fazer algo de bom ao mundo. Mas a gente precisa descansar.
Estive no Brasil há dois meses, pouco tempo antes da data prevista para o fim da minha missão no Iêmen. Não imaginava que os últimos meses seriam assim.
Apesar de a data estar próxima, ainda não me enxergo saindo daqui. É melhor sobreviver a cada dia.
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