domingo, 22 de dezembro de 2013

Nos EUA, um ano antes de ser assassinado, Chico Mendes anunciou a própria morte

POR MARCO ANTONIO MENDES


Eu viajara a São Paulo para passar o Natal com minha mãe, como sempre fiz enquanto ela viveu. Viagem longa, de Rio Branco, no Acre, onde morava há oito anos, até a “pauliceia desvairada”.

Logo ao desembarcar recebo a notícia: Chico Mendes fora assassinado. Difícil acreditar. Fiquei sem chão. Depois de anos escrevendo para os jornais Varadouro, Gazeta do Acre e Folha do Acre, sobre as ameaças de morte que Chico recebia, estava interrompida para sempre, a sua trajetória viva no planeta que ele tanto se empenhara em preservar.

Mas, acima de tudo, a notícia que me paralisou às vésperas de um Natal em família, era dramaticamente real: o assassinato longamente anunciado consumou-se na noite seguinte ao solstício de 1988. No entanto, aquele episódio se prestaria ao amadurecimento no Brasil, de relevantes questões relacionadas à Amazônia, e por tabela, da questão ambiental; quiçá influenciando outras plagas e rincões.

Na noite do assassinato minha mãe também verteu lágrimas, em meio à tristeza e perplexidade que tomou conta de nós. Ela conhecia muitas histórias a respeito de Chico, e assim como milhares, ou talvez milhões de pessoas vivendo na capital paulistana, nutria admiração e respeito por ele, e pela maneira como defendia a Amazônia. Um sonhador no ocaso do milênio, que não esperou acontecer para fazer a sua hora.

Pouco mais de um ano antes eu o acompanhara numa viagem a Nova York, quando foi premiado por uma ONG grã-fina, a Sociedade por um Mundo Melhor (Better World Society). O manda chuva da ONG era ninguém menos do que Ted Turner, criador da CNN e desde sempre um filantropo da área ambiental. Durante a cerimônia ele foi apresentado como o homem cujo propósito era usar a mídia – em especial a televisão – para envolver as pessoas de forma construtiva, nas ações relacionadas aos destinos do planeta, transformando-o num lugar melhor para se viver.

Hospedamo-nos no Waldorf Astoria, coincidentemente no mesmo momento em que Reagan e Nancy ali também se alojavam, pois o presidente americano encontrava-se em Nova York, para a abertura da Assembleia Geral da ONU.

Ao jantar de premiação, realizado nos chiques salões daquele hotel, compareceram marcantes personalidades da política, da área ambiental, da televisão, das artes, e do meio empresarial nos Estados Unidos.

Aquela viagem representaria mais um impulso na escalada de Chico Mendes, projetando-o e chamando a atenção de pessoas influentes em escala global, para a sua luta à frente dos seringueiros da Amazônia, na defesa de formas tradicionais de subsistência. Tal embate pressupunha a preservação da floresta, clamando por conter o avanço das pastagens, cuja implantação exigia derrubar e queimar um tesouro vivo, e retirar os meios de vida dos povos que nela habitavam.

Um homem meigo, sempre risonho; de bem com a vida. A exemplo de Mandela e de Gandhi, Chico era um homem cordato, e com eles se assemelhava em sua determinação e simpatia. Da mesma forma como eles, trouxe a força da docilidade para uma luta feroz contra os desmatamentos, em favor daqueles que então se nomearam “povos da floresta”.

Pois aquele homem simples - que logo no primeiro banho em Nova York, depois de uma longa viagem desde Xapuri, se enrolou todo e precisou pedir ajuda para identificar o que era, e onde estava o chuveiro da sofisticada suíte de hotel - não titubeava ao solicitar apoio para a causa dos seringueiros. Essa era uma das suas permanentes inquietações; quase como respirar.

Na viagem à “gringolândia”, Chico Mendes contou com o imprescindível apoio de Steve Schwartzman, antropólogo do Fundo de Defesa do Meio Ambiente (Environmental Defense Fund), ONG que tem entre as suas causas a defesa das florestas tropicais. Do desembarque ao último minuto da estadia de Chico nos Estados Unidos, ele o acompanhou, orientou e serviu de intérprete. Um assessor de primeira linha, que com boa vontade se desincumbiu do nó na gravata ao papel de tradutor, mas que, sobretudo, indicou-lhe o caminho, talvez não das pedras, mas dos tapetes de veludo sobre os quais Chico desfilou com desenvoltura a sua simpatia sonhadora. Num certo sentido, Steve foi um importante arquiteto da projeção de Chico no exterior.


Com roupas emprestadas para a cerimônia de gala da noite de premiação (também eu envergava um traje emprestado e, confesso, um pouco grande para o meu tamanho), Chico soube usar os 90 segundos que lhe foram reservados para se dirigir à distinta plateia, para mais uma vez dar o seu recado. Ele foi direto ao ponto:

- Fazemos um apelo ao povo norte-americano para que continue exigindo políticas e práticas ambientalmente responsáveis… dos maiores bancos internacionais que financiam o desenvolvimento da Amazônia... Ajudem-nos a enfrentar as multinacionais – inclusive as norte-americanas – que, neste momento, através da exploração de madeira, contribuem para aumentar a devastação...

Naquela noite Chico circulou um pouco desconfortável no traje, mas emanando a elegância da sua personalidade, entre pessoas eminentes, capazes de influenciar milhões ao redor do planeta. Com a sua modéstia, sorriso e docilidade cativantes, porém, não deixou de denunciar que há anos era vítima de perseguição implacável.

Muitas celebridades presentes ao jantar – entre outros, Phil Donahue, Aga Khan, Lester Brown, Maurice Strong, Roberta Flack, e claro, Ted Turner – estavam de olhos e ouvidos bem atentos para o líder seringueiro das selvas de Xapuri, quando ele mencionou, naquela elegante noite nova-iorquina de 21 de setembro de 1987 (Dia da árvore, no Brasil), as ameaças que frequentemente recebia, muitas das quais eu noticiara nos jornais, na condição de repórter.

Exatamente um ano e três meses depois, no início da trágica noite de 22 de dezembro de 1988, um tiro ecoaria desde Xapuri até Nova York, reverberando uma explosão de comoções, ante a revolta de personalidades de relevância mundial.

A veracidade das denúncias de Chico comprovou-se com um tiro de espingarda quase a queima-roupa. Em consequência, aqueles 90 segundos, algumas horas, ou talvez dias de fama vividos na cidade cosmopolita por excelência, concederam-lhe nova credencial, garantindo seu acesso à confraria dos homens de bem que marcaram a história.

As pessoas envolvidas na morte de Chico Mendes possivelmente pensaram que estavam se livrando de um grande problema. Ao contrário, porém, elas ajudaram a construir um mártir (quem sabe, no futuro, um mito), pois ele havia sido um líder inconteste, de uma causa duplamente inconteste, social e ambientalmente.
 




Ted Turner foi o primeiro a falar durante a cerimônia em Nova York. Naquela noite os aplausos não eram necessários, pois se John Lennon lá estivesse, não titubearia em reiterar que bastava aos presentes chacoalhar as jóias. Além de se referir à admiração pelos valores e garra de Chico, o magnata pioneiro da comunicação global postou-se ao seu lado:

- A Sociedade por um Mundo Melhor coloca-se ombro a ombro com o Senhor Mendes e com aqueles que estão lutando para conter a devastação ambiental em todas as partes do mundo.

Maurice Strong, destacado líder do movimento ambientalista internacional, foi quem entregou o prêmio – de fato uma medalha – ao seringueiro do Acre. Depois de mencionar a importância das florestas tropicais para o planeta, e de lamentar a rapidez com que estavam sendo destruídas, concluiu sua fala oferecendo apoio:

- Ele (Chico) tem dedicado seu conhecimento e liderança para impedir o desmatamento no Brasil. Através de organizações sociais de base. Através de uma ação política. Sua luta afeta a todos nós. Desta forma, nós da Sociedade por um Mundo Melhor, estamos orgulhosos ao declarar nossa solidariedade a Chico Mendes.

Clique aqui para conferir no Blog da Amazônia a sequência do artigo/depoimento. Marco Antônio Mendes é jornalista e escritor, autor de “Delírios a propósito de uma fantasia erótica”.

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