POR LEILA JALUL
Em 2007, em prestações suaves, mamãe comprou seu bilhete de passagem para o outro lado da vida, se é que ele existe. Abatida e preocupada, passei a ler e escrever com loucura. Fuga.
Os blogs ainda estavam na moda, na crista da onda, e foi através do sítio de Carlos Zamith, excelente juiz de direito amazonense, que ainda escreve o "Diário de um Juiz", que conheci o blog "Flavia, vivendo em coma", escrito por sua mãe Odele Souza.
Confesso que o drama vivido por Odele, por um tempo, desviou minha atenção. Saí do encegueiramento por minha mãe e passei a nutrir um sentimento de compaixão. Aliás, somente compaixão. Por mamãe, por Odele, por Flávia e, principalmente, por mim. Pensei em oferecer ajuda financeira as despesas. Só não ofereci pelo simples fato de também de ajuda eu precisar. Meu saldo bancário chegou muitas vezes ao vermelho sangrento. Mas não posso negar a vontade de.
Compaixão e ajuda financeira foram coisas que Odele jamais pediu. Em claras palavras rejeitava esses tipos de graciosidades. De piedade e cifras ela não precisava. Odele clamava por justiça contra o condomínio que, por irresponsabilidade, potencializou o sistema de limpeza da piscina, o que fez com que a sucção do ralo passasse a sugar 78% a mais do que deveria sugar, isto de acordo com perícia técnica realizada na piscina, por ordem judicial.
Aquele motor instalado na piscina de 95 cm de profundidade, onde Flavia nadava, era adequado para uma piscina de dimensões bem maiores. Superdimensionado para o tamanho daquela piscina, o motor causou uma sucção tão forte que cortou, em definitivo, a alegria e os passos da filha de Odele.
E foi assim que o “acidente” aconteceu. Flavia, aos dez anos de idade, teve os cabelos sugados pelo ralo da piscina. E o tipo de acidente que vitimou Flavia, continua, infelizmente, a matar pelo menos uma pessoa por ano no Brasil, onde as crianças são as maiores vítimas. Para mudar este quadro é que Odele se envolve dia a dia na luta por uma Projeto de Lei Federal de Segurança para as Piscinas do Brasil, com o objetivo de evitar que outras mães passem pela mesma dor que ela e que outras crianças não venham a ter o destino de Flavia.
Mamãe morreu aos 84 anos; a vida feliz de Flavia foi bruscamente interrompida aos dez. Em coma vigil, há quinze anos, sem direito a retorno. Bem cuidada por profissionais e pela mãe, Flavia é uma moça sadia, mas obviamente com as terríveis sequelas neurológicas deixadas por um acidente que poderia ter sido evitado, caso tivessem sido observados os cuidados com a segurança da piscina.
Odele exige dedicação de seus auxiliares. As pessoas que cuidam de Flavia precisam ser, além de profissionais competentes, pessoas carinhosas com sua filha. E há aqueles, felizmente, que com profissionalismo e carinho se dedicam à Flavia. O cabelereiro Ary vai uma vez por ano ajeitar o corte dos bonitos cabelos de Flavia. A mãe, respeitando o gosto da menina, mantém seus cabelos longos. As unhas de Flavia são pintadas e nelas coladas florzinhas, bem ao gosto das jovens de sua idade. Ao descer para o jardim para tomar sol, Flavia desce com as roupas combinando, pulseira, brincos e gargantilhas.
Desde o acidente, Flavia é atendida diariamente por fisioterapeutas e fonoaudiólogas. As consultas médicas quando possível, são feitas em casa. Quando não, são usados carros acessíveis que dão à Flavia maior comodidade no trajeto casa-hospital ou casa-consultas médicas.
Voltando ao blog, além de dinheiro e piedade, Odele recebeu ofertas de ajuda e um bom número de insultos. Propostas insinuantes de prática de eutanásia, milagres garantidos por fiéis de igrejas evangélicas e outras mais. Por sorte, o número de seguidores e amigos foi infinitamente maior. Houve dias de congestionamento na caixa de comentários. A história de Flavia atravessou fronteiras. Da Europa, principalmente, chegaram mensagens de conforto e solidariedade. E foi de Portugal que partiram caravelas de carinhos para a menina e para sua mãe. Fatyly, Isabel Filipe e Antônio Moreira, foram alguns amigos que perfilaram com Odele. Deste último, surgiu a ideia de preparar mensagens de voz para Flavia.
Esqueci de dizer que Flavia, pelo que observou Odele, tem a audição preservada e bastante aguçada. Odele descobriu isso ao perceber os sobressaltos de Flavia ao ouvir os latidos de Michele, a cadelinha da casa. E pela sutil mudança na expressão do rosto de Flavia, quando Odele lê as mensagens de Antônio. Flavia demonstra gostar e até esboça um leve sorriso ao ouvir a voz do amigo português. É que a voz de Antônio é sedosa e carregada de afeto com a menina a quem ele chama de Princesa. Vale a pena ouvir as palavras do bom professor português que ama a brasileirinha e a trata como a uma filha querida que está adormecida. Outras presenças infalíveis são a música ambiente e a leitura de textos juvenis.
Odele e as auxiliares de enfermagem se revezam para contar histórias para Flávia.
A grande imprensa descobriu o caso. E Odele, em busca de justiça, não deixou de mostrar as razões de sua luta. Mostrou, sim, mas preservando a imagem de Flavinha. Não deixou que filmassem sua menina de forma escancarada ou em close, como se diz, e nunca uma gravação de imagem foi permitida sem que Odele estivesse a postos, no controle de tudo.
Também nunca permitiu que lhe fizessem perguntas sobre sua vida pessoal com o argumento de que nenhum valor agregaria ao caso. Articulada, dona de uma serenidade invejável, Odele sabe portar-se diante das câmeras. Sabe dizer um sim e um não com a mesma naturalidade.
Foi Odele quem abriu o álbum de família e enviou as fotos que ilustram estas linhas - a minha modesta homenagem a dois belos exemplares do gênero feminino.
Faz algum tempo que, para não ficar repetitiva, Odele redirecienou o blog "Flavia, vivendo em coma". Continuar falando apenas de Flávia, pensou ela, não divulgaria sobre os cuidados que se deve ter com as crianças que utilizam piscinas, sejam elas públicas, sejam privadas. Ela sempre fez isso. Apenas acentuou e atentou mais para as necessidades de prevenção. E passou a noticiar muitos outros acidentes que aconteceram Brasil afora. E em outros países, também. A questão da má instalação de ralos deixou de ser o alvo central. Os cuidados com crianças e adolescentes viraram o foco. Também virou destaque a busca por uma legislação eficaz. O Brasil ainda não dispõe de regras básicas pertinentes.
Odele entrou na luta. Fez-se assessorar de técnicos de reconhecida competência e elaborou uma espécie de projeto para que, em Brasília, um deputado assumisse a paternidade e apresentasse em plenário uma proposta de lei para regular o uso de piscinas e o controle de técnicas na fabricação destas. Piscinas seguras e protegidas.
O deputado Darcísio Perondi comprou a sugestão mas o Projeto de Lei Federal de Segurança para as Piscinas do Brasil continua parado e sem qualquer atenção dos legisladores brasileiros, inclusive a do próprio autor. Uma lástima.
Na próxima semana, Odele estará representando o Brasil no Simpósio sobre Afogamentos, em Fort Lauderdale, Flórida. O evento acontecerá nos dias 13 a 15 de marco, na NDPA – National Drowning Prevention Alliance (Aliança Nacional de Prevenção de Afogamentos). Sua participação só será possível em função de assistência dos serviços home care, contratados para que a integridade de Flavia seja assegurada.
Neste março, quando se homenageia as mulheres, elegi Odele Souza, mãe de Flávia Belo de Souza, a mulher de coragem. A que não se permite deixar abater. A batalha de agora não é só por sua filha e sim pelos filhos de um país que não prioriza a atenção especial às suas crianças. O meu desejo é que não faltem forças para Odele, em cujas veias corre sangue nordestino. Dos bons.
Presto homenagens, ainda, a outras mulheres cuidadoras de seus entes queridos que, embora vivos, perderam a plenitude do viver.
"A vida sugada por um ralo de piscina", da jornalista Eliane Brum, é o melhor artigo sobre a luta de Odele por mais segurança nas piscinas do Brasil.
Leila Jalul é cronista acreana e mora no interior da Bahia
2 comentários:
Oi Altino!
Muito obrigada por publicar o texto de Leila sobre mim e Flavia.
Pois é. Estou viajando na segunda-feira para um encontro que considero importante para a causa que defendo: Mais segurança nas Piscinas do Brasil.Uma das pessoas com que vou conversar em Fort Lauderdale é a Dra.Maria Pillar, uma médica da Colômbia que também perdeu um filho num acidente idêntio a esse que devastou a vida de Flavia. A Colômbia tem a melhor Lei de Segurança para Piscinas existente no mundo. Acho que vou aprender muito com a Dra.Maria Pillar e com os demais participantes do Simpósio Sobre Afogamentos, na NDPA.
Forte abraço Altino!
Que belo texto. Parabéns Sra. Leila e eu Altino, e obrigado pela boa leitura, bom domingo.
Cheers.
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