domingo, 15 de novembro de 2009

A PONTE QUE SE PARTIU

POR JOSÉ RIBAMAR BESSA FREIRE

Escrevo de Bogotá, para onde vim convidado pela Biblioteca Nacional da Colômbia. Eles me pediram para dar uma conferência sobre as experiências vividas com os índios no Brasil e sobre minha pesquisa relacionada à história social das línguas, incluindo aí as narrativas que circulam, oralmente, nas comunidades indígenas.

No auditório, havia índios de diferentes etnias - alguns dos quais escritores e poetas - além de quilombolas, ciganos, afro-descendentes, estudantes, professores, historiadores, antropólogos, bibliotecários.

O título do evento: “Interculturalidade: palavra, memória e identidade”. Comecei meu lero-lero, informando qual era a língua que iria usar na conferência. Para justificar a escolha, contei três histórias que vivi.

Hasta luego

A primeira delas, em 1971, quando estava exilado na França, inicialmente com um visto de turista, com três meses de duração, findos os quais tinha de sair do país para poder renová-lo. Viajei, então, para Londres. O amigo brasileiro, que me recebeu em seu apartamento perto de Portobello, me pediu um favor. Ele tinha de entrevistar um venezuelano, a quem havia convidado para jantar:

- Não falo nada de espanhol. Você, que viveu no Chile e no Peru, fica pra jantar e traduz quando for preciso.

Maravilha! Filei a bóia e retribui a generosa hospedagem. Durante o jantar, mediei a conversa e me exibi ‘hablando’ pelos cotovelos. Gastei todos os meus ‘entonces’, ‘sin embargo’, ‘por supuesto’, ‘sin duda’, crente de que estava abafando. De madrugada, nos despedimos, hasta luego, muchas gracias, buenas noches. Já segurando a porta do elevador, o venezuelano nos perguntou:

- Ustedes dos no son de la misma región de Brasil, ¿verdad?

Respondi, dizendo que efetivamente meu amigo era de São Paulo e eu, do Amazonas. Caprichei na pronúncia de ‘Sao’ Paolo, sem o til, como se fosse o próprio Maradona. O venezuelano, então, olhou pra mim e fulminou:

- Con razón, el portugués que tu hablas es más fácil de entender.

Fechou a porta do elevador e foi embora me deixando arrasado, desmoralizado diante do meu amigo. Quer dizer, o venezuelano nem desconfiou que aquilo que eu tinha falado a noite toda era espanhol. Achava que era português. O cara era mesmo um babaca. Será? Vamos ver.

Felicitaciones

No início de agosto de 1994, visitei Buenos Aires. A velha rivalidade com a Argentina estava no auge. O Brasil acabara de ser tetra-campeão e um brasileiro estava ali, perdido na noite, no bairro de San Telmo, precisando pegar um táxi para voltar ao hotel. “El taxista no puede saber que soy brasileño” – pensei ‘con mis botones’, em espanhol, para ir treinando. Decidi falar o mínimo possível pro cara não me identificar. Não queria humilhar derrotados, além do que taxistas cobram mais caro de estrangeiros.

- ¿ Para dónde va usted? – perguntou o taxista, colocando o ponto de interrogação de cabeça pra baixo antes da frase como fazem os falantes de espanhol, quando escrevem.

O hotel onde eu estava hospedado ficava na esquina de duas ruas muito conhecidas. Então respondi: “Corrientes con Florída”, pronunciando o ‘con’ com ‘n’, como fazem os falantes de espanhol. E calei a boca para sempre. Mas o taxista, em cima da bucha, me cumprimentou: “Felicitaciones por el tetra”.

Minha Santa Periquita! Valei-me Santa Etelvina! O argentino descobriu que eu era brasileiro, com apenas três palavras que pronunciei em espanhol. Bem, pelo menos eu achava que era espanhol! Mas o problema é mais grave, porque envolve outras línguas, como ficou demonstrado na terceira situação ocorrida na França, quando fazia ali meu doutorado. Aí, eu disse ‘au revoir’ a qualquer pretensão de falar uma segunda língua.

Au revoir

Dona Elisa, minha mãe, uma dona de casa humilde do bairro de Aparecida, em Manaus, foi me visitar em Paris, levando dentro da mala uma penca de bananas e umas mangas que a Leonor – a quitandeira, sua vizinha – havia mandado de presente para mim.

Uma noite, convidei amigos franceses pra jantar. Fiz tudo direitinho comme il faut: merci beaucoup, pardon, oulalah, oui, non, bien sur, dis donc, voilà.

Dona Elisa, calada, olhava seu filho poliglota com orgulho. No final, depois que eles saíram, eu disse:

- A senhora viu? Os caras adoraram a sobremesa de manga.

- Meu filho, o que eles falaram, pra mim é latim. Eu só entendi, porque você falou.

Aí – seriozinho! - eu juro por Deus, quero ver minha mãe mortinha no inferno, quero que Santa Luzia me cegue se estou mentindo. Com muita convicção, com um tom de voz que não deixava lugar a dúvidas, com aquele exagero amoroso que só as mães são capazes, ela disse:

- Meu filho, você fala francês muito melhor do que os franceses.

Fiquei estupefato, nunca imaginei que o amor filial fosse tão ousado. Ela achava que eu era como o Rui Barbosa, o homem de sangue na guelra, que foi pra Inglaterra ensinar inglês. Compensou, assim, a desfeita do venezuelano e do taxista argentino. Justificou sua avaliação:

- Você fala melhor, meu filho, porque o francês deles, eu não entendo nada. Mas o seu, eu entendo tudo.

Parecia a mãe do técnico Joel Santana, assistindo a entrevista coletiva que ele deu, em inglês, na África do Sul. Foi aí que me dei conta que qualquer língua que fale, falo em português. O léxico pode ser de uma língua estrangeira, mas o resto é em português do Amazonas: as formas de enunciação, a entoação, o ritmo, a cadência, o sotaque, tudo isso é na base do ‘ái donti bélíve, bichinho’.

Em dois minutos, contei essas três historinhas pros colombianos, para justificar a língua que usaria na conferência. Depois, durante uma hora desenvolvi o tema que me pediram, falando espanhol, mas em português.

E o que é que isso tem a ver com a ponte que se partiu? Ih, já ia me esquecendo! Li no Diário do Amazonas que o Consórcio responsável pela construção da ponte sobre o rio Negro quer aumentar o preço da obra de R$ 574 milhões para quase R$ 900 milhões, o que é proibido pela Lei Geral de Licitações.

O Consórcio alega que o solo do leito do rio não é o que eles pensavam que fosse, vão ter que botar camisa metálica nas estacas, camisa que, pelos preços, devem ser compradas em butiques caras de Paris.

Para justificar a ‘facada’ no contribuinte, o Consórcio pagou dois pareceres: um técnico e outro jurídico, com muito blá-blá-blá, lesco-lesco, patatati-patatá e latinorum. Faltou, porém, um parecer ético, que eu queria dar, de graça, denunciando um negócio que está fedendo. Por isso, o título: a ponte que se partiu. Não deu. Fica pra outra vez. Hasta luego, my friend leitor! Au revoir!

O professor José Ribamar Bessa Freire coordena o Programa de Estudos dos Povos Indígenas (UERJ), pesquisa no Programa de Pós-Graduação em Memória Social (UNIRIO) e edita o site-blog Taqui Pra Ti .

6 comentários:

Magui disse...

Maravilha de texto.Coisa fina!

Anônimo disse...

Muito interessantes seus contos viu Ribamar!deu para dar umas boas gargalhadas...!!!
Hasta pronto..rsrsrsrsrs..

Cruzeirense disse...

Pela primeira vez li um post "longo" todo. Belo texto.

Maria disse...

Que delícia esse texto!

Altemar disse...

Outra sugestão,
Altino, por favor divulgue.

http://www.municipionline.com.br/americanamidia/

Unknown disse...

Beleza. Também tenho algo para contar sobre falar português com peruano em Lima. No mesmo sentido do professor Ribamar. Pero és vero, por supuesto. Bom o texto.