sexta-feira, 9 de outubro de 2009

VIVO E MEIO MORTO

Marcelo Apel

Outro dia, Silmara e eu estávamos na comunidade Bela Vista, em Manoel Urbano, na beira do rio Purus, no Acre. Agradável conversa com Diô, líder comunitário. Chega o sobrinho. Diô pergunta:

- Tudo bom?

E o rapaz desanda a chorar:

- Não, o filho de meu irmão morreu.

- Como foi isso?

- A gente tava na Itaúba, ele ficou com diarréia, ontem, no final da tarde, e passou a noite toda mal. Hoje de manhã, arrumamos uma canoa com rabeta para ir para a cidade [entre seis e oito horas de viagem] levar no médico.

A mãe, de 16 anos, e a sogra vinham juntas. O menino, de seis meses, não parava de chorar e gemer. Por causa do sol, a mãe cobriu o rosto do bebê e ele foi se acalmando até parar de chorar. A mãe cochilou. Quando acordou, tirou o pano do rosto e o pequeno já estava morto. Morreu no braço da mãe.

Ôôô coisa ruim, amoleceu as pernas. Pediram para a gente trazer ele para a cidade, estávamos de lancha. Descemos para beira do rio rapidamente. O menino estava com os olhos abertos, arregalados. Ainda vejo os olhos dele deitado no fundo da lancha.

Voltamos rápido para a cidade - duas horas rio acima. Fomos na casa da avó por parte da mãe, não estava em casa. Chegamos na casa do sogro, deixamos o bebê e a mãe. Silmara ficou com elas. Fomos, Aguiar e eu, atrás do pai para dar a notícia.

Caminhamos uns 40 minutos para chegar numa colônia. Encontramos o pai alegre, pois duas vacas tinham parido.

Os olhos nos traem e a cara conta. Perguntamos se ele sabia que o filho estava doente:

- Não sabia, trouxeram ele pra cidade?

- Trouxemos, mas... Ele está morto.

Minuto de silêncio comprido, interminável, eterno.

É a realidade amazônica crua e morta que bate à porta. Ainda há muita coisa por fazer, mas não tenho mais cabelo para perder. Então vão ficar brancos.

- Mas pai, a vida continua - diz minha filha.

Que bom. O pequeno se chamava Francisco.

Marcelo Apel é consultor técnico.

7 comentários:

Joana D'Arc disse...

Altino,RELATOS COMO ESTE ME FAZEM INSISTIR NO CLAMOR PELO DEBATE DA SUSTENTABILIDADE HUMANA COMO PRIO RIDA ABSOLUTA,JÁ VIVEMOS NO TERCEI RO MILÊNIO...NASCE MAIS UMA ESTRE LINHA NOS CÉUS...FRANCISCO É LUZ! Joana D'Arc

Picaretas da Távola Redonda disse...

As histórias e estórias da Amazônia que nos conquista e emociona... o "ruim" é que a gente se apaixona.

Viajar com o Marcelo é sempre muito bom e permeado de causos, ora divertidos ora trágicos.
Hummm hum!

Abraços Cabeleira!

Válber Lima disse...

Não sou médico, nem profissional de saúde, mas dá pra perceber que o problema é mais de informação do que de saúde pública. A mãe com 16 anos não deve saber dos métodos contraceptivos. A criança de seis meses contrae diarreia por falta de cuidados de higiene dos que cuidaram dela. Depois, a criança com diarreia deveria tomar soro caseiro, e não enfrentar oito horas de barco e sol quente. Sem informação não há sistema de saúde que dê jeito.

Rosangela Barros disse...

Bom dia, Altino!

Estórias tristes como essa nos faz crê, cada vez mais, que o sistema de saúde pública do Acre é também para gringo vê (mais uma vez me coloco no contexto para justificar o que escrevo). Aqui e agora para discordar do senhor Válber Lima, pois acompanhei sena semelhante a esta (do sobrinho do Diô) numa Terra Indígena do Jordão: junto com as mães e crianças estavam médicos e enfermeiros, no entanto seguiram rio abaixo sob o sol torrencial em busca de postos de saúde: porém as crianças foram morrendo e sendo enterradas às margens do rio. Seria falta de informação? Vejo mais do que falta de informação e do que de saúde pública: aí falta mais responsabilidade do poder público com as vidas humanas, mais compromisso com a informação, mais sustentabilidade na saúde pública. Depois que entregam a floresta para os gringos: vem um Governador desse irresponsável (porque eu vi de perto) ir atrás de americanos para garantir a sustentabilidade da floresta em pé(depois que estão derrubando tudo): eles tem mais é que garantir a sustentabilidade das vidas humanas que estão entregue a sorte e ao acaso, melhor dizendo: mais compromisso e mais responsabilidade com as pessoas humanas, principalmente com as crianças que são indefesas e frágeis!

Vingador disse...

Bem,
Sem comentários...

Marcelo Apel disse...

então...

interessante... os comentários até agora... fico pensando e perdendo o resto dos cabelos

algumas coisas... primeiro é necessário ativar a sustentabilidade planetária... do jeito que vai não haverá nem planeta e nem ser humano ou qualquer ser para ser priorizado...

um pouco do contexto... a mãe é esposa de um agente de saúde e tem as informações necessárias e deu o soro... e nisso o sistema público até funciona bem... pelo que lembro era rota vírus (é assim que escreve) e aí a coisa é mais complicada...

e por outro lado apesar dos riscos é bom ter filho cedo (talvez não tão cedo) pois assim teremos companheiros e amigos pra o sempre (enquanto durarmos)...

agora eles tem outro Francisco, esta hitória ocorreu em setembro de 2005...

por estranho que pareça... para mim essa história me deu esperanças e esperança tem que ser motor de compromisso e ações...
foi meu batismo no Acre... e para cada um o batismo é o seu batismo...

tenho outras histórias como diz o Felipe e vou colocando publicamente conforme for andando a canoa...

cuidem-se bem...

Rosangela Barros disse...

Senhor Marcelo, a sustentabilidade planetária bem ou mal se houve falar que anda sendo propagada em países que valorizam, além da vida do planeta, as vidas humanas... agora aqui a conversa é a sustentabilidade de vidas que estão sendo desrespeitadas dentro da política mais bem vista no planeta: a sustentabilidade da floresta amazônica!.. Se a floresta está sendo exportada, o que nos resta pensar das vidas que dela sobrevivem?