Luiz Cravo Dórea
Era um imenso espaço dentro de um edifício de pedra dos tempos medievais. Acordei de madrugada com o barulho de pelo menos umas 30 pessoas dentre outras 150, desconhecidas entre si e das mais variadas partes do mundo, que roncavam em beliches colocados lado a lado. Aquela estranha sinfonia durante a primavera espanhola marcou uma das mais enriquecedoras experiências que eu já tive: o Caminho de Santiago de Compostela.
É um caminho de autoconhecimento, milenar, cenário da busca espiritual de Paulo Coelho no livro O diário de um mago (1986). Muitas pessoas desejam um tempo sozinhas para repensar os seus ideais e o sentido de suas vidas. Há quem o faça por motivos religiosos ou ainda por simples aventura
De qualquer forma, independentemente do que se passa nos subúrbios da alma do andarilho, há certas percepções inevitáveis. Por exemplo, se você é capaz de compartilhar dormitórios e banheiros com pessoas que sequer falam a sua língua e até achar engraçado uma guerrilha de roncadores dentro do seu albergue, por que não podemos viver em harmonia em família, no trabalho, com o outro?
Muitos se sentem infelizes ou como cidadãos de segunda classe por não terem um carro luxuoso ou certos objetos de consumo. No entanto, em poucos dias de caminhada sentem que são capazes de dormir, comer o necessário e sentirem-se felizes sem cartões de crédito. Apenas uma mochila contendo uma muda de roupa e pouquíssimos objetos pessoais.
É verdade que não é necessário viajar para a Espanha ou outro local do planeta para tais experiências existenciais. Poderia ser por aqui mesmo, no Acre, na bela estrada de Rio Branco a Cruzeiro do Sul, ou no culto do Santo Daime, para alguns. Mas a minha experiência foi o Caminho. É dele que eu me lembro quando as coisas não vão muito bem na polícia, como ocorre em qualquer lugar. Nessas ocasiões, recordo-me que diante de todas as adversidades há que se manter a calma e tomar atitudes ponderadas e justas. E, principalmente, prosseguir sempre.
Além das percepções pessoais, destaca-se a paisagem por onde passa o peregrino. São vilarejos e construções seculares, com vinhedos, cerejeiras e oliveiras. A hospitalidade das pessoas é tanta que muitas vezes desperta a vontade de ficar por ali mesmo. Mas ele segue. Acorda, arruma a mochila, verifica o mapa e ruma para a próxima cidade porque sabe que tem um objetivo, um caminho a percorrer, uma meta a cumprir.
O Acre é como um desses lugares em minha jornada de vida. Não é necessário ter uma trajetória magnífica como Plácido de Castro ou Chico Mendes. Eles são heróis, são únicos. Para pessoas comuns como eu basta dar o melhor de si dentro do que cada um faz, não chegar de costas e não deixar que o preconceito e o orgulho lhe impeçam de ver que neste Estado sobram pessoas aptas a mudar a nossa sociedade para melhor.
Esses atores sociais estão por aí, nas escolas, nos hospitais, na Justiça, na imprensa, nas delegacias, no empresariado, com um poder de transformação que às vezes nem se dão conta. De nada, absolutamente nada, adianta o conhecimento sem ações práticas, muitas vezes baratas e simples, que dependem de alguns telefonemas ou de pequenos acertos. Enfim, o que vale é a atitude.
Dizem que o Acre é longe. Longe de onde? O tempo de vôo entre Rio Branco e Brasília é quase o mesmo entre esta e Porto Alegre. Também, tomando-se a capital federal como referência, o tempo que a separa de Rio Branco é a metade das seis horas de avião entre Nova York e San Francisco, nos Estados Unidos.
Compreendo porque tantos passaram e ficaram no Acre. Eles encontraram o sentido de suas vidas aqui. A sua visão de cultura não é shopping center ou lojas de marca. Fizeram da crença na floresta o seu projeto pessoal e criaram um jeito singular de experimentar a essência da vida. A esses e às professoras da Escola Dom Bosco, que cuidaram com tanto carinho do meu filho autista, eu me despeço com respeito e admiração.
Ter vivido no Acre é o que de melhor trago em mim agora. É a jóia do meu currículo. Levo para o próximo destino, além da minha mochila de policial nômade e novos amigos, a lembrança da Ópera Aquiry, da elegância dos Ashaninka, da dignidade dos povos da floresta, do Parque Nacional da Serra do Divisor, da Transoceânica, símbolos de uma terra de passado glorioso, presente definido e futuro esperançoso.
◙ Luiz Cravo Dórea, 41, é superintendente da Polícia Federal e representante regional da Interpol no Acre. Conforme este blog havia antecipado, perde o Acre. Dórea foi promovido e deixa o cargo de superintendente da PF no Acre. Assumirá a Coordenação-Geral de Polícia de Repressão, que é subordinada à Diretoria de Combate ao Crime Organizado. O novo superintendente no Acre será José Carlos Chalmers Calazane, chefe da delegacia da PF em Foz do Iguaçu (PR). Leia no Blog da Amazônia uma entrevista com Luiz Cravo Dorea.
Um comentário:
Caro Altino, o Acre perde mais um cabra bom!!
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