Marina Silva
No último dia de 2008, vivemos mais uma vez a rotina de assistir, pela décima vez, a vitória de um queniano na Corrida de São Silvestre. Tanto eles vencem, e há tanto tempo, que já nos sentimos íntimos desses homens negros esguios e discretos que parecem ter nascido para correr. De certo modo, quando ganham, não nos é difícil aceitar e até sentir um certo orgulho de nossas raízes africanas. Perdemos? Sim, mas para os quenianos. Como se fosse a nossa segunda opção de torcida.
E o que sabemos do Quênia? Em geral, pouco. Um país que até o início de 2008 era considerado uma das ilhas de estabilidade na África, conhecido pelos seus magníficos parques nacionais e pelos Masai, uma das tribos mais antigas do continente e muito ciosa da manutenção de sua cultura. Entre os ambientalistas é conhecido por ter, em Nairóbi, a sede do Programa de Meio Ambiente da Organização das Nações Unidas, o PNUMA.
Em 2008, a violência política escancarou outra imagem, num conflito que resultou em mais de 300 mortos e fez a própria ONU cogitar de mudar o PNUMA para outro país. Quando esta hipótese circulou foi um trauma nacional, pois a presença da máquina administrativa da ONU cria uma economia de serviços significativa, além de internalizar recursos e gerar empregos locais.
Estive três vezes em Nairobi, para reuniões da área ambiental. Três aspectos me chamaram a atenção. Primeiro, como os quenianos caminham! A falta de transporte, a pobreza e o próprio costume de andar faz com que Nairobi seja uma cidade de pedestres. As pessoas vão ao trabalho e a todo lugar, distâncias curtas e longas, num passo miúdo e rápido, quase correndo. Formam-se filas enormes de pedestres nesse ritmo. Lembrei-me da declaração de um dos quenianos vencedores em São Paulo, há alguns anos, de que andava diariamente 5 quilômetros para ir à escola. Vi até que ponto a resistência para caminhar faz parte da vida de toda a população.
Numa dessas viagens, em 2007, fui informada de que mais de 40% da população estavam numa situação de desemprego praticamente crônico e, do restante, a maioria dispunha de empregos precários. Metade da população vive abaixo da linha da pobreza, e a expectativa de vida não passa de 49 anos.
Os desempregados chegam de manhã às praças e ali passam o dia, à espera de que alguém apareça para oferecer trabalho temporário. São milhares de pessoas. Quem necessita de serviços não procura nos classificados dos jornais, vai a uma praça e ali escolhe o jardineiro, o encanador, o eletricista. Um brasileiro, funcionário do PNUMA, contou-me que contratou um rapaz que afirmou ser eletricista. Só em casa constatou que ele não entendia nada de eletricidade e quase acabou eletrocutado, mas faria qualquer coisa para ganhar algum dinheiro. O brasileiro e a esposa, diante desta situação tão dolorosa, encontraram uma forma de remunerá-lo, mesmo tendo que chamar outro para fazer o serviço.
O terceiro aspecto é o da ligação cultural dos quenianos com o plantio de árvores. Usam espaços não cimentados da cidade e lá produzem e vendem mudas. A cidade é muito arborizada, mas não na nossa concepção de algo arrumadinho, com uma estética planejada para ser bela. Lá, o resultado é muito bonito, até emocionante, mas cria uma espécie de biodiversidade espontânea, não de canteiros, mas de paisagens que têm uma vida toda própria, feita de movimento, diferença. E da mesma forma que aqui temos vendedores de rua com seus churrascos-de-gato, salgadinhos, roupas, lá a maioria de vendedores de rua comercializa plantas e mudas.
Se temos o hábito de correr atrás da bola desde criancinhas, os quenianos correm atrás de emprego, de escola, de uma oportunidade para sair de dificuldades quase insuperáveis. E todo ano recebemos seus campeões e os admiramos e aplaudimos. A corrida de São Silveste bem poderia ser a porta para nos interessarmos mais pela África, conhecermos seus povos tão próximos de nós e tão abandonados pela economia global predadora.
◙ Marina Silva é professora secundária de História, senadora pelo PT do Acre, ex-ministra do Meio Ambiente e colunista da Terra Magazine.
5 comentários:
Beleza de artigo. Marina é mara. Interese eu tenho Senadora, afinal de contas venho de lá, minha vó paterna nasceu na Senzala, embora livre, na Ilha de Marajó. Bom seria termos informações de que lugar da África viemos, mas aquele Douto Senhor queimou as anotações.
Enquanto isso a Universidade faz copy-cole para os vestibulares, quando deveria produzir conhecimentos que realmente valorizem essa identidade brasileira. Só pra se ter uma idéia, no curso de história, na Ufac, história da África é só uma disciplina optativa.
Realmente a Africa é um universo de diversidades, com suas etnias, seus costumes, suas culturas, suas identidades. O Pais africano que li recentemente foi Ruanda, após me chamar a atenção a matança de inocentes (homens, mulheres e crianças) uma matança iniciada pela etnica hutu sibre os tutsis. Recomendo a leitura sobre qualquer material que mencione o continente africano. Mais uma vez a nossa Senadora nos presenteia com um excelente texto. Viva Marina
Hércules
Que belo texto Marina. Que belo conceito de vida a amiga Marina passa para a gente. Das notícias quase que habituais sobre a corrida de São Silvestre a nossa Marina traz uma observação - visão humanitária sobre o Quênia.
Muito obrigada pelo relato, aprendi mais um pouco sobre a África.
Um amigo que recentemente esteve na Etiópia em seu blog e e-mails fez uns relatos assustadores sobre a fome e a miséria.
Voltou para o país em que reside com a certeza de que sua ida a Eti[opia não foi em vão.
Voltou com a obrigação de fazer alguma coisa diante da fome e miséria que vivenciou. Provavelmente retornará para a Etiópia e na bagagem levará um rol de endereços de seus amigos internautas que adotarão por alguns dias ou meses "a alimentação de alguns etíopes".
Seremos em parceria com esse amigo que se dispoem a voltar lá na Etiópia - amigos de alguma/s famílias e mesmo que à distância ajudar um pouco essas pessoas.
Receberemos via e-mail/vídeo e a certeza que a ajuda de cada chegou à família adotada (com testemunhhos).
Se Deus quiser esse projeto pessoal desse amigo vingará e se realizará ainda no primeiro semestre de 2009.
Sabemos que ainda será muito pouco o que em conjunto realizaremos, contudo, saberemos que estamos ajudandos nossos irmãos lá no outro continente a se alimentarem.
Lendo o texto da Marina, me lembrei do nosso compromisso para com o nosso amigo brasileiro de ajudar algumas pessoas de lá. Foi o nosso propósito ao final do ano de 2008 para com esse amigo que mora hoje no Canadá.
Enfim, tomara que isso se realize e possamos ajudar.
Claro, antes de algumas críticas, registro que os daqui do Brasil também sabem da obrigação de ajudar os nossos brasileiros que também necessitam.
Iremos por etapas se Deus quiser!
ALTINO A NOSSA SENADORA MARINA REALMENTE TEM UM PERFIL DE CIDADÃ DO MUNDO.TODOS OS FINS DE ANO EU VEJO A CORRIDA DE SÃO SILVESTRE,QUE BELEZA DE ESPORTE E LÁ ESTÃO ELES[QUêNIANO] CORRENDO PARECE QUE ELES CORREM POR NECESIDADE NÃO POR ESPORTE E SIM PARA PODER REPARTIR O PRÊMIO COM SEU POVO.AO POVO QUÊNIANO DESEJO MUITAS CORRIDAS DE SÃO DE SILVESTRE.MUITAS VITÓRIA[PARA O PRIMEIRO LUGAR O PRÊMIO É DE R$ 25.000,00].
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