sábado, 8 de março de 2008

REPOUSO DO GUERREIRO

Elson Martins



“Minha geração fez livres poemas e hoje
paga suas penas”
(Océlio Medeiros)

Ele amanheceu na terça-feira, 4 de março, queixando-se de dores nas costas. Até então o aneurisma que vinha sofrendo há meses se anunciava com outro sintoma: a doença o fazia cambalear tonto, precisando recorrer à bengala com cabeça de onça que o arquiteto e artesão acreano, Paulo Dene, concebeu e torneou a seu pedido.


Até aí tirava de letra. E brincava: encomendou outra bengala - esta com cabeça de passarinho - para presentear um amigo de infância de Xapuri, Jarbas, que fora expoente do golpe militar de 1964.

- O Jarbas é um sujeito orgulhoso, tomba dentro de casa, anda todo enfaixado, mas não quer usar muleta!

E tome gargalhada!

Deitou na cama e respirou fundo, mas as dores continuaram até a boca da noite. A filha anjo da guarda Elizabeth, apreensiva com a nova situação, achou por bem levá-lo ao hospital. O médico apenas confirmou o diagnóstico esperado: não havia como prolongar a vida daquele guerreiro, filho de juiz e neto de coronel da Revolução Acreana.

Aos 95 anos de idade, o advogado e professor universitário, ex-deputado federal, jornalista, escritor e poeta Océlio de Medeiros, por volta das 19 horas, levantou-se da maca com o restinho de vida que lhe restava para sofrer a tonteira final. Mal teve tempo de morrer nos braços de sua querida Bete.

Em novembro do ano passado estive com ele em Brasília. Almoçamos num restaurante próximo à quadra que morava, depois ele fez questão de mostrar um pomar que mandou plantar, meio às escondidas, no parque ao redor. Não abriu mão de importar as mudas frutíferas do Acre.

Os moradores da SQS, bloco K, não estranhavam mais as irreverências do vizinho do 106, que mantinha o apartamento com a porta da frente aberta, dia e noite, para simbolizar liberdade e risco.

Irônico, pornográfico, anarquista de pai e mãe, Océlio não sossegava nem dava sossego a quem privava de suas inquietudes. Que o digam os personagens reais (ditos ficcionais) do livro Represa, que publicou em 1942 sobre o “igapó de almas” que era a sociedade de Rio Branco da época. Que o digam os militares que o cassaram em 1964. Os grileiros e jagunços que tiveram de enfrentá-lo como advogado do irmão Eurico Medeiros nos anos 1970. E o Judiciário acreano, que tentou impedir seu amigo Pedro Marques da Cunha Neto de continuar defendendo os direitos de seringueiros e posseiros, por causa de uma entrevista bomba publicada no jornal Varadouro.

Ah! Que o digam também os daimistas, a quem ele defendeu com extraordinária competência num processo conduzido pela Justiça Federal contra o Santo Daime (ayhuuasca), já nos anos 80.

Sua vida foi uma aventura enorme, extravagante e ousada. Deixou rastro de inteligência belicosa. Seus livros, mais de 10 publicados e outro tanto a publicar, falam, corajosa e poeticamente, de Plácido de Castro e Chico Mendes. E de um amor profundo ao Acre e à Amazônia.

Aqui e ali, ele se contradizia na volúpia das frases, alternando desapego e escárnio, escracho e doçura.

Ultimamente, dizia não querer saber de papéis, mas enviou um monte deles para a Vássia revisar e editar em Florianópolis. E na capital federal fez parceria com o coronel do Exército Luciano Rocha Silveira para ilustrar, a traço de nanquim, os “Apontamentos sobre a Revolução Acreana”, de José Plácido de Castro. Sonhava ver o livrinho sendo manuseado por crianças em todas as escolas públicas do Acre. Na capa, o leite da seringa escorre branco até chegar à tigela, onde vira sangue.

Morrem com ele poemas inéditos, lançados ao vento, e uma memória monumental da região que o gerou. Imagino que será bem recebido no céu, como filho honrado de Xapuri! E que Deus será tolerante quanto aos excessos que ele cometeu na terra.

Elson Martins é jornalista. Na foto acima, de novembro de 2007, Yasmin, filha de Elson, e o velho guerreiro.

5 comentários:

Saramar disse...

Quando um poeta se vai, ficam suas palavras, ao vento, passando por dentro da alma da gente.

beijos

Unknown disse...

Querido altino. A pena mais sensível do Acre - Elson Martins - se despedindo de uma pena rebelde e suave. Que presente você nos deu! Abraços. Marcos Afonso.

Sílvio Francisco Lima Margarido disse...

Elson, ele morreu aqui, aprisionado pelas poesias e lembranças de sua " Represa".
Homem não foge de seu próprio destino.
bom obtuário

Unknown disse...

Legal... o amigo citado é meu pai que faleceu a 8 anos... Saudades...

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.