sábado, 16 de fevereiro de 2008

O ENCONTRO

José Carlos dos Reis Meirelles

A vida dos viventes é que nem cipó titica. Começa lá no galho alto de um pau, pequenininha. Vai encompridando, encompridando, cria folha, chega ao chão, finca raízes, dá semente e morre.

Mas o destino tem mania de tecer paneiros com o cipó das nossas vidas.

- Quem faz um cesto, faz um cento!

- “A basta tê cipó e tempo”, responde o destino.

Cipó não falta e tempo é o que ele mais tem. E se no fábrico do paneiro é usado cipó de várias vidas elas se cruzam, não tem apelo!

Major estava na aldeia de Taken, como sempre, juntando couros de gato e onça, negociando anacãs e ararajubas com as mulheres, caçando e pescando, vivendo vida de índio, o que de fato era.

Nesse dito dia, bem cedinho, Irikiti, da aldeia Iapú vem à procura do Major avisa-lo que naquela aldeia tinha couros de gato e onça pra negociar e se ele não iria lá levar tabaco pro velho Iapú. Claro que iria, caminho bom, hora e meia de distancia, um pulo.

Uá-ru, casado e amigo de Major se oferece pra ir junto. Levaria sua espingarda 36 nova e três cartuchos que havia carregado, pra matar nambu. Na saída, Tuíra, o famoso cachorro de Taken-ru, bandolero que só, acompanhou o Major e Uá-ru.

Com meia horinha de vigem Tuíra, puxando a fila, para e se espoja no meio do caminho, como fazia sempre ao encontrar rasto de onça. Sacode o rabo duas vezes e sai latindo na trilha. Não demora nada topa a onça. O latido de cachorro rastejando é um, correndo atrás da caça é outro. Pouca corrida e Tuíra late acuado.

Obrigação de quem anda com cachorro na mata é conferir o que está sendo acuado, nem que seja um rato. Major e Uá-ru vão ao encontro de Tuíra.

Jaguareté-uhú bem que podia se virar e dar um tabefe naquele bichinho abusado, de pelagem incerta, do tamanho de um guaxinim, correndo atrás de um macho de onça pintada que não crescia mais.

Só podia ser um bicho louco. Os habitantes da mata têm medo dos loucos. E ele se obriga a subir num tauari que caiu e ficou cavaleiro no gancho de um pau d´arco.

Tinha comido um caititu quase todo e barriga cheia pede cochilo e não confusão.

Major e Uá-ru chegam embaixo do Tauari e vêm aquela onça enorme cada um a seu modo. Um como um couro de primeira, esticado no capricho, sem buraco de chumbo no corpo. O outro como dois dentes em seu colar de poucos exemplares.

Do ponto de vista de Jauareté-uhú, ali estavam um guaxinim desbotado, um guariba grande e um macaco quatá maior ainda, ao alcance dos dentes. Se estivesse com um pouquinho de fome...

- Atira na onça Uá-ru!

- Não Majó, muié ta buchudo e menino nasce eó-te (doido)! Toma, atira tu!

Imaginando o courão espichado, Major faz ponto no pé do ouvido da pintada e atira. Tirinho chocho de cartucho pra nambu. Jaguareté-uhú sente uma pancadinha na cara. O chumbo nem o couro grosso fura! Paciência pouca e incomodado pelo abuso cuida em descer do tauari e dar uns tabefes naqueles macacos abusados, e quem sabe amanhã, comer o mais gordo quando a fome voltar.

Major e Uá-ru, conhecedores do espírito das pintadas saem na carreira, deixando o velho e bom Tuíra com ela. Afinal foi ele que inventou essa “empeleita”.

Chegados ao caminho, Uá-ru fica ouvindo pra onde Tuíra corre atrás da onça desacuada e Major corre chamar Taken-ru, especialista no assunto. Meia hora de caminho na carreira num dá quinze minutos, com pensamento de se topar com onça corrida de cachorro num dá dez.

Recado recebido, Taken-ru pega o velho arco, três flechas de ponta de ferro e passo ligeiro, mas sem correr, encontra Uá-ru que diz:

- Ouça, teu cachorro ta acuado! Longe! E aponta o rumo.

O velho Caapor entra na mata e caminha no rumo dos latidos. Major vai junto, mais curioso que companheiro.

Chegam à caída de um pequizeiro. Fora, Tuíra latindo. Dentro, a onça rosnando. Aquele rosnado que as onças rosnam, jogando a courança da testa em cima dos olhos, mostrando os dentes e murchando as orelhas, baixo e grave.

- Txxxiiiiiiirrrrrruuuuummmmm!

Taken-ru coloca uma flecha no arco e caminha em direção ao balseiro com a calma de quem vai tomar uma cuia de chibé.

Jaguareté-uhú, não olhou mais para o cachorro. Saiu do balseiro e caminhou para aquele ser abusado. A uns seis metros de distância da presa, no instante anterior ao pulo fatal, fitou-o nos olhos.

Não estava mais ali um ser abusado. Seu olhar não era de caça. Era de caçador, de ava-eté, homem verdadeiro. Ouviu um sibilar fino, firiririri, antes de sentir uma picada na sangria.

As pernas fraquejaram e o pulo ficou na intenção. A última coisa que fez antes de morrer foi dar um esturro medonho que ecoou nas grotas e calou a mata por boa hora.

- Majó, Jaguareté-uhú morrê à toa. Meu colá num cabe mais dente!

Taken-ru morreu por volta de 1950, segundo Major, que não contava bem os anos. Um ano depois de ter matado Jaguareté-uhú. Talvez de tristeza. Um guerreiro Caapor mata onça até o colar de dentes completar uma volta. Daí em diante é Tamui, velho.

Florindo Diniz, o Major, apresentou-me o mundo Caapor em 1971, quando comecei a trabalhar na FUNAI. Me ensinou a andar no mato e a ouvir os índios.

Morreu em 94 ou 95. Mais ou menos. Do jeito que contava os anos. Por ver a mata do oeste maranhense se acabar e não saber viver no descampado.

Taken-ru está novo e na casa de Maíra, caçando jaguaretés-uhú para fazer seu colar de dentes.

Major deve estar trocando anacãs e ararajubas por espelhos e miçangas com o próprio Maíra.

E o destino, que é tecelão eterno, continua tecendo paneiros com o cipó das nossas vidas.

Taken-ru deve ter falecido por volta de 1950. Um ano depois da morte de Jaguareté-uhú.

Florindo Diniz, o Major, me introduziu no mundo Caapor, nas matas do Turiassú em 1971. Com ele aprendi a andar no mato e a conversar com índio. Dona Maria José, sua esposa, foi minha mãe postiça enquanto estive com eles, de 1971 a 1976. Faleceu antes dele. Deve ter morrido de tristeza em 94 ou 95, vendo as matas no Maranhão se acabarem.

Um comentário:

Saudades do Acre disse...

Essas estórias do Meirelles têm a força para exumar de minha memória fatos aparentemente deletados pelo tempo. Aos oito anos de idade, em 1959, fui testemunha, no Seringal Boágua (hoje assentamento), do ataque de uma pintada, que provavelmente velha demais para caçar presas silvestres, abateu um bezerro de uns cem quilos no curral, pulando com ele uma cerca de arame farpado de 1.50 m de altura sem danifica-la. Ao arrastá-lo mata a dentro, porém, deixou um rastro inconfundível, que permitiu aos peões localizá-la, descansando sobre um cipoal e tendo seu sossego perturbado por um bando de macacos-de-cheiro, que aos gritos, acusavam sua presença. Foi abatida por um tiro certeiro de 44(papo amarelo) e seu couro pagou o bezerro.