sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

BEIRADÃO - PÓ DE TODAS AS SERRAS

José Carlos dos Reis Meirelles


Beiradão é como se chama o local do porto das cidades da Amazônia, onde batelões, canoas e cascos menores ancoram, ou aportam, vindo do baixo e do alto rio, que sempre passa ao largo da cidade, zangado com as coisas que a cidade despeja nele.

Aqui, no Feijó, antigamente, no beiradão, havia uma pequena serraria, do Bento, que beneficiava pequenas quantidades de madeira para o consumo da construção das casas na cidade.

Nada que depredasse o meio ambiente - “pôca coisa”, claro. A serragem era depositada na frente da serraria para aterrar a lama do porto e criava um chão fofo e cheiroso, sem lama. Ao lado, uns bares onde a gente tomava umas e outras olhando pro Envira, falando mal da vida alheia e mentindo.

E nestes bares sempre tem os bêbados contumazes, como o Barrão, que já virou pó, não de serra, de estrela. Pois é, o Barrão chamava o lugar de "Pó de Todas as Serras".

O tempo passou, reformaram o local e hoje no lugar do pó de serra existe uma rua calçada de tijolos, que vive cheia de lama trazida pelos pneus dos carros, carroças e pés de quem vem do porto.

Mas continua o pó de serra, de todas as serras, como dizia o Barrão. Mas no tempo do pó a gente não sujava os pés. Pisava em serragem macia e os bêbados que desmaiavam não machucavam as fuças, caiam no macio...

Mas tudo se moderniza. O porto tem uma rua calçada, os bares melhoraram o visual. E mudaram também os visitantes do beiradão. Os índios dos altos rios, kampa e kulina, fazem parte da diuturna paisagem do pó de serra. Os velhos estão todos aposentados e trazem, em seus batelões próprios, filhos, noras, genros, netos e bisnetos para receber “o apusentadoria”.

No tempo do "Pó de Todas as Serras", a gente via kampa e kulina, uma vez por ano. Traziam em sua ubás enormes, tocadas a varejão por seis a sete homens, toneladas de feijão “poroto”, sua moeda de troca.

Vendiam o feijão, compravam o que precisavam e até o ano que vem. Nas aldeias a fartura era grande. Muita caiçuma, banana, caça e peixe. Doença quase nenhuma. É certo que também naquele tempo os índios tomavam umas e outras, que ninguém é de ferro.

Hoje, o pó tá tijolado, as ubás foram trocadas por batelões com motores. Cada velho tem um. O feijão é o cartão magnético do banco, que acaba na mão do comerciante que avia o velho. A fartura das aldeias foi trocada por escassez, a doença nunca se acaba.

Ainda hoje tava vendo um monte de kampinha, meninos e meninas, remexendo lixo, no pó de serra. Os rapazes, a maioria bêbada, e as moças pra cima e pra baixo, em seus kusmas e colares, despertando olhares dos freqüentadores do beiradão.

Isso é de dia, pois à noite, os homens bêbados não conseguem ver suas filhas namorando nos cantos escuros. E tem doença venérea, tem muito cabeça azul. No tempo do pó era cachaça, agora é cabeça azul, - álcool 92% misturado com água ou puro.

Para completar o quadro, os velhos, administradores das aldeias e que organizam o trabalho dos grupos familiares, só vivem viajando. A aldeia fica acéfala. Passa o tempo da broca, o roçado velho fica na mata e o porco do mato come, e tenho visto em algumas aldeias falta de macaxeira e banana.

Tudo bem, é escolha dos índios e ninguém tem o direito de se meter em suas decisões. Não se trata disso. Só acho que eles aprenderão da maneira mais dolorida e pagando um preço muito alto.

O "Pó de Todas as Serras" está mais movimentado que antigamente e com novos freqüentadores. Também pudera. Aposentaram os índios velhos. Os antigos moradores da beira do rio, velhos também, estão aposentados.

Os que vêm pra rua, de vez, não duram muito. Morrem de tristeza, como o seu Cambeça e outros que deixaram suas colocações para morar na “rua”. Brancos e índios, filhos, netos e bisnetos, misturados no beiradão.

Hoje começa o Carnaval e o furdunço no pó promete. E quem não gosta de festa? O Envira está cheio e os batelões estão amarrados a 15 metros do barracão que a prefeitura fez pro carnaval. Eu ia ver a festa, mas desisti. Não há o que comemorar. O rescaldo dos dias de folia vai ser triste.

Vou ficar em casa, lembrando do antigo "Pó de Todas as Serras", dos seus bêbados, de seu chão macio com cheiro de cedro e de “eu moço”. Das aldeias fartas, das ubás de caiçuma, dos índios bêbados cantando seus mariris, das mulheres e moças bonitas, sadias, e da meninada brincando no rio.

Sem serragem, o beiradão tá muito escorregadio.

José Carlos dos Reis Meirelles é sertanista chefe da Frente de Proteção Etno-Ambiental do Rio Envira.

4 comentários:

Matthew Meyer disse...

Altino, esse sr. Meirelles é um tesouro acreano. Abraços carnavalescos do seu irmão americano. Mateus

Matthew Meyer disse...

Caro Altino, obrigado por postar sempre os contos e lembranças desse Meirelles. Ele é um tesouro acreano. Abraços carnavalescos do seu irmão americano. Mateus

ALTINO MACHADO disse...

Ele já enviou outra história tão ou mais interessante. m forte abraço, mano.

morenocris disse...

Linda menina. Depois vou voltar pra ler o post.

Beijos.