sábado, 19 de janeiro de 2008

REALIZAÇÃO PESSOAL

Leila Jalul

A formatura da primeira turma de curso de medicina da Universidade Federal do Acre foi motivo de manchetes na mídia local. Teve e terá direito aos festejos de praxe, tais como aula da saudade, placa comemorativa, baile de formatura, compra de anéis (acho que isso não mais, pois é cafona para os tempos modernos), e outras solenidades.

Dez criaturas, novinhas em folha, são a expressão viva do novo momento do ensino superior no Acre.

Aposentada do serviço público desde 1994, não tendo nenhuma pessoa conhecida entre os egressos, não tendo mexido uma única palha para a implantação do curso, sem conhecer nenhum dos professores e nenhum dos familiares, fiquei completamente tomada de alegria. A sensação de que esse curso faz parte de um esforço que também foi meu é inexplicável e real. Mas tenho razões que, se não explicam, justificam.

Quando inaugurada a Fundação Hospitalar do Acre, era reitor o professor Moacir Fecury. O curso de Enfermagem da Ufac possuía um quadro invejável de profissionais. Assim, muito rapidamente, cogitou-se ser a Fundação Hospitalar um embrião para a criação do curso de medicina. Falou-se em ser administrado por profissionais da enfermagem, servir de campo de estágio, até que a burocracia permitisse a criação de medicina. Foi uma idéia que não vingou. Não era o tempo.

A "catigoria" dos políticos da época, em Brasília e na paróquia, não possuía vontade nem cacife necessários para bancar um empreendimento dessa ordem. Quem teve, empenhou-se e realizou. Ademais, o quadro de médicos, à época, era insuficiente para atender os setores de saúde do Estado, seus consultórios particulares, fazendas de gado e mais 20 ou 40 horas semanais em sala de aula. Muito poucos eram especialistas capacitados para atividades didático-pedagógicas. Eram generalistas da medicina, embora escolhessem o campo de ação. Tudo a esmo.

A coisa mudou muito. O tempo exigiu. Enquanto isso, levas de estudantes seguiram para a vizinha Bolívia em busca da medicina. Primeiro um convênio entre o Estado e o país hermano. Protocolo oficial, tudo arrumadinho na Universidade de La Paz para receber os acreanos. A oferta era generosa e limitada, ao mesmo tempo. Não lembro o número de vagas oferecidas. Sei que eram poucas.

Em Cochabamba, na Universidad del Valle, os alunos acreanos descobriram outra brecha para cursarem medicina. Não havia, nem há, na Bolívia, a existência do famigerado vestibular. Há vagas, há alunos em sala. Não adianta querer discutir a política educacional boliviana. Um ano de propedêutica faz seleção natural para os seguidores do doutor José Barral y Barral. Teria que saber muito mais, ficar por lá muito mais, para emitir opinião. Ficando na Universidade do Vale, restrinjo-me ao curso de medicina que é o foco.

Boas instalações, laboratórios equipamentos e professores. Nas localidades de Tiquipaya e Kanarancho, moravam cerca de 12 alunos acreanos. Destes, 11 cursavam medicina. Apenas 4 concluíram. Um outro, por ter casado com uma aluna, concluiu engenharia civil, iniciada e quase completada em São José dos Campos. Também encontrei por lá dois paranaenses filhos de minha amiga de infância Judite Barreto dos Santos, que cursavam arquitetura. Os dois (um menino e uma menina), eram tenistas profissionais e muito considerados no esporte local. Eram agraciados com bolsas de estudo. No altiplano, as diferenças se destacam. Passei 40 dias conhecendo a área e o entorno, sem encontrar nada de anormal. Até aí.

Nos anos seguintes deu-se a revoada dos jacus. O crescimento de alunos/ano era avassalador. Começaram a surgir cursos de fundo de quintal, alunos do Mato Grosso e do Mato Grosso do Sul freqüentavam as aulas com botas e esporas, compravam provas, escandalizavam a sociedade local com seus modos grosseiros de peão de boiadeiro e filhos de papai fazendeiros, fechavam boates na base do tiro e outros vandalismos mais. Não gostavam do Savia Andina, nem do Pacha. Apenas isso.

O que era sonho, virou pesadelo. Estabeleceu-se o desrespeito, o descrédito e o preconceito contra o ensino boliviano e contra quem lá se havia graduado. Esses fatos levaram o Conselho Federal de Medicina a ter altíssimas precauções com os formandos na Bolívia, muito embora um bom número de profissionais médicos bolivianos, sem qualquer outra exigência, atuasse na política e na área de saúde, simultaneamente. Exemplo disso tem o doutor Armando Salvatierra, renomado. Não bastasse, na TV Bandeirantes, diariamente, o professor Wagner Horta enxovalhava a todos, sem qualquer conhecimento de causa e sem ressaltar as exceções.

Encurtando: os quatro alunos de medicina que formaram numa turma de 10, frutos da primeira leva, estão em situação confortável. Todos obtiveram o CRM através de exames de equivalência de estudos em universidades brasileiras, e conceitos obtidos através de provas orais e escritas. Tudo isso depois de haverem desembolsado 3 mil dólares para o tradutor oficial (verter o vocábulo anatomya para anatomia é trabalhoso) e mais uns bons trocados pelos carimbos e viagens para a realização dos exames. Todos já realizaram a R2. Agora, em 2008, um se prepara para um estágio em neurocirurgia pelo prazo de 6 meses nos Estados Unidos.

Uma trabalha num hospital de uma empresa que possui dois helicópteros estacionados no pátio para os deslocamentos de emergência. Outra possui uma clínica especializada em gastro-pediatria, faz PSF e muitos trabalhos sociais em Minas Gerais. Enfim, todos formados na Bolívia e muito bem, obrigada! Politicamente corretos. Não foram devidamente observados no Acre.

Estas são as razões de, juntamente com os formandos da primeira turma de medicina, embalde as ocorrências de fraude, me orgulhar e me realizar pessoalmente pela existência desse curso, como se tivesse feito parte de sua criação. Pode não ser o melhor curso do Brasil nem na melhor universidade brasileira. Mas é fruto do clamor de uma juventude filha de costureiras, seguranças, funcionários públicos e outros segmentos desprovidos de poder aquisitivo.

Não ficarão jamais acometidos da vaidade acadêmica de possuir a nobreza e a realeza do completo e complexo domínio em todas as áreas do saber. Não serão Deuses. As coisas aconteceram como deveriam ter acontecido. De Áulio Gélio Alves de Souza até Jonas Filho, fez-se o que tinha de ser feito, num escalonamento lógico e natural.

Um recado aos formandos da primeira turma de Medicina, com invólucro em papel de presente: Meninos e meninas: realizando os sonhos seus, realizam um sonho meu. Nossos irmãos e irmãs brasileiros do Acre precisam de atenção. Cada conquista precedida de noites insones deverá ser convertida em tentativas de proporcionar saúde para os excluídos, ribeirinhos, periféricos e adjacentes. O som das hepatites, das verminoses, dos maláricos e desnutridos devem soar alto em seus ouvidos. É hora de lutar pela vitória do conhecimento.

Foi para o senador Tião Viana o gesto de agradecimento pela implementação do curso. Para o doutor Rodrigo foi à afeição devida ao grande incentivador e mestre da arte do bem querer aos necessitados. Paraninfo de formando é sinônimo de identificação. Paraninfo é o recheio da empadinha.

Que Deus os abençõe em cada procedimento médico e os ilumine no diagnóstico das desventuras humanas. Estou realizada. E feliz!

Nossa querida Leila Jalul já despachou a bagagem num caminhão e vai embora do Acre nos próximos dias. Faz bem. Ela explica:

- Vou. Posso voltar. Aqui é meu lugar. Com ou sem sabiá. Vou de corpo. A alma ficará na blogosfera acreana, algumas vezes séria, outras vezes doida, muitas vezes ninguém. Gosto de ser doida. É um contraponto aos poucos sérios de plantão. O Acre me encanta. Os poucos amigos são razão para viver e apostar no porvir. O Acre poderá nunca vir a ser o melhor lugar para morar, mas, com certeza, é o melhor lugar para questionar e amar. Sem delongas nem medos.

Um comentário:

Unknown disse...

Mesmo que não volte, manterá, de forma perene, a sensação de que tem de arrumar as malas para voltar. Migrar é morrer de saudade a cada final de dia, Leila -sabes disso. É viver uma vida provisória. Cenários novos são cenas passageiras. Cenários definitivos para nossas vidas já foram fixados de uma vez por todas no nosso peito. É assim depois de viver por tanto tempo a realidade do que fizemos "nossa terra". Isso mesmo. O sentimento de pertencimento é construído ao longo da vivência e nas formas dos nossos envolvimentos e, a distância, descobrimos tantos.

Pensei que, uma vez a saudade estivesse intalada no peito de uma vez por todas (você, Leila, tem essa sensação, faz pouco tempo), pudesse sentir os pesos das minhas âncoras daqui, que são muitas e pesadas (seis filhos, três netas), e uma comunidade de colegas onde sinto valorizado o meu desempenho como um velho professor. Pensei pudesse ouvir Georgia sem me emocionar. Engano, a porcaria dos óculos ainda teimam em ficar embaçados a cada vez que ouço Ray Charles desfilar seu lamento pela perda da terra querida.

Como te sei teimosa como as velhas mulas que deram vida a nossa terra dos seringais, quem sabe farás das fugas da saudade bons momentos de vivência nessa nova experiência. Afinal és bem doida.