segunda-feira, 26 de novembro de 2007

A DIFÍCIL ARTE DA TRANSLUCIDEZ

José Carlos dos Reis Meirelles


Nestes últimos dias, por conta de uma hérnia inguinal esquerda –os nomes de doenças e acidentes médicos são sempre pomposos, com ares de nomes de reis ou arcebispos-, ando quieto em casa de amigos, nesta Rio Branco que se moderniza em barulho, trânsito agitado e confuso, parques da Maternidade e do Tucumã e Mercado Velho remodelado, lindos! Só não achei aqueles donos de lojinhas que tinham tudo, o povo do Barriga Cheia, por exemplo. Coisa de quem faz muito tempo que não anda por aqui, meio assustado em ver gente apressada andando como paulistano pelo centro da cidade.

Escutando os barulhos e vendo o movimento, como num ato de reação, me transporto para as beiras do alto Envira ou para uma aldeia de índios qualquer vizinha ao Xinane. Sentado num toco de pau-de-lenha vejo as mulheres assando macaxeira e curimatã gorda, umas fiando algodão e outras tecendo batinas. Alguns homens que estão em casa ajeitam flechas de matar peixe, outros furam contas para o futuro colar, um ou outro tem os olhos perdidos na lentidão das águas do rio. As crianças fervilham ao redor das casas em suas traquinagens de meninos e meninas aprendendo a vida. Mas ninguém tem pressa.

Nós corremos porque somos uma sociedade competitiva, onde o ideal é ser mais, é ter mais, é tirar a melhor nota, ser classificado em primeiro lugar. A maioria dos índios vive em sociedades igualitárias, onde os indivíduos buscam ser iguais, portanto livres. Lição aprendida lendo um livro de meu amigo e brilhante antropólogo Mércio Gomes: "A liberdade absoluta não existe. Ela é limitada por relações sociais, idade, sexo e outro fatores. Por isso ela é uma busca. E estes povos igualitários que buscam permanentemente a liberdade não tem presente, só futuro. O hoje é apenas uma circunstância que deve ser superada para se chegar ao amanhã".

E arremato: estes povos sabem que o hoje vai ter a mesma duração do ontem e no amanhã todos chegarão juntos. Então, para que a pressa? E o que diabos a translucidez tem a ver com isso? Essa propriedade que tem algumas matérias atravessadas pela luz. Quanto menos refletem luz mais se tornam invisíveis. Como o ar ou a água, que só em grandes quantidades e vistos de longe, tomam tons de azul.

Descobri que quando nos metemos no meio dos índios, com a mochila cheia das melhores intenções (que abrem os caminhos do céu e asfaltam a autopista pro inferno), no intuito de ajudá-los, nos esquecemos que são povos igualitários e começamos a brilhar. Na aldeia, por vício civilizado de superioridade, e na cidade por ser o “diferente” que deixou a civilização para se meter no exótico, no desconhecido.

Isso é charmoso e dá até medalhas, títulos e prêmios. Mas o camarada volta pro mato brilhando mais que estrela de primeira grandeza, arrogante que só jacu choco. E atrapalha todo o ritmo da aldeia, ofusca a visão dos índios, que acabam tropeçando em obstáculos que antes reconheciam, mas não vêem mais, por excesso de luz.

Irradiar luz é muito gostoso, dá ibope, grana e convite pra festa. Aqui, na nossa aldeia. Lá na aldeia dos índios é melhor, quem é de fora, começar a treinar a difícil arte da translucidez. Ser transparente, quase invisível, observar sem incomodar. É a única maneira de aprender alguma coisa com eles. Deixar a luz passar por nós e iluminar o caminho do seu amanhã talvez seja a única maneira de sermos convidados a caminhar juntos e, quem sabe, no futuro, nos tornar livres.

O sertanista José Carlos dos Reis Meirelles chefia a Frente de Proteção Etno-Ambiental do Rio Envira, na fronteira do Brasil com o Peru. A foto é uma visão parcial de Rio Branco na noite de ontem, a partir da janela do avião.

3 comentários:

morenocris disse...

Caramba, quanta semiologia. Parabéns! Prazeroso! Bela imagem, perfeita com o texto!

Beijos.

Anônimo disse...

O texto é muito bonito e sensível.
Toca em especial as escuras vaidades...

beijos

Eliane Fernandes disse...

Oi Altino, quantas jóias você nos oferece!
já fazia um tempo que não visitava seu blog. Não por falta de vontade, mas por falta de tempo. Estava viajando novamente nele e me deparei com estes ricos textos de Meirelles. Ah, homem, quanta beleza! Enquanto isso fico aqui com saudades deste Acre. Ano que vem espero conseguir voltar aí. Oh minha terra do coração. Saudade, saudade, saudade! Parabéns Meirelles!!! Longa vida e sempre!!!!!

Eliane