terça-feira, 6 de novembro de 2007

CUIDA DO RIO, VÉIO

José Carlos dos Reis Meirelles


Recebi hoje, com muito orgulho, o título de cidadão acreano que me foi concedido pela Assembléia Legislativa do Acre. Projeto de lei do deputado Moisés Diniz, de 2005. Como vivo pelas fronteiras, fica difícil me encontrar. Escolhi o Acre como meu estado há muito tempo, de fato. Hoje sou acreano de direito. Aqui vivo desde 1976 e hoje o Acre é também meu estado de espírito.

Vivi sempre nas fronteiras do Acre com o Peru, dos índios conhecidos e desconhecidos, no limite deste Estado com o Peru, uma linha tênue, imaginária, chamada paralelo 10º. E tive o privilégio de conhecer, andando por esta linha imaginária, todo o limite das terras dos isolados com o Peru.

Numa das viagens, olhava com satisfação meu filho Artur, subindo as ladeiras daquelas terras firmes, aprendendo o difícil ofício de gostar daquelas matas, que antes de nos acolher como moradores, nos testa, espinha, dá frieira, rói-rói, picada de carrapato-estrela, mucuim, coceira de ferrada de catuqui, carapanã, mutuca de sete qualidades, queimadura de cipó-de-fogo, ardume de jiquitáia, ferrada de tucandeira, marimbondo do oco e todo tipo de empecilho. Isso tudo pra ver se o cabra é de casa.

Depois do teste, a mata nos concede a satisfação dum banho de igarapé de água gelada, de uma dormida tranqüila, do sabor de uma paca assada. E ter o privilégio de ver o rastro de um índio isolado, um tapiri, um vestígio.

Mas como todo morador de fronteira, desconfiado que só nambu-azul, cismo que um título ou um prêmio que me é dado como homenagem -e quem não gosta de homenagem, principalmente no limiar dos 60 anos de vida, quando a modéstia morreu de velha e a timidez adoeceu?– ao mesmo tempo me cobra, no pacote, mais compromisso e responsabilidade com o Acre.

Agora tenho o título de cidadão empunhando a miniatura-réplica da espada de Plácido de Castro, a mim conferida pelo governo Jorge Viana, apontando pro meu peito a me dizer:

- Cuida, véio do rio!

Vou continuar a cuidar. Mas como flechada trocada não dói, se preparem, senhores deputados: vou usar minha homenagem como escudo da timidez e a espada do Plácido de Castro como arma para cobrar mais apoio do que já estou recebendo para cuidar da fronteira onde vivo, da minha fronteira com o Peru e da minha fronteira com o desconhecido, com os índios isolados.

Os possessivos são propositais. Cuida bem quem cuida como se fosse sua própria casa. O Acre sempre foi meu chão. Agora é oficialmente.

- Cuida, véio do rio!
- Cuida do rio, véio!

O acreano José Carlos dos Reis Meirelles nasceu na capital de São Paulo, foi criado em Santa Rita do Passa Quatro, se formou em engenharia, ingressou na Funai e veio parar no Acre, onde está há 31 anos, sendo 20 deles dedicados à Frente de Proteção Etno-Ambiental do Rio Envira. Diferente de alguns canalhas que já receberam o título de cidadão acreano, Meirelles dignifica a honraria. Leia mais sobre o sertanista. Clique aqui.

Um comentário:

Anônimo disse...

Prezado Sr.Meirelles:
Justa homenagem,"quae sera tamem", por décadas de trabalho e dedicação em prol dos povos invisíveis do Acre e suas fronteiras(ou, à ausência delas...).Há décadas também lhe dedicamos nosso respeito e admiração por sua renitência e fibra ética: como indigenistas, sentimos na pele (ou no couro)a dimensão exata das dificuldades, dos riscos, das frustrações e da indignação que sempre nos assoma dainte dos podres poderes que sempre querem sufocar a vida, de preferência com requintes de crueldade burocrática.Que a meritória homenagem provoque, de alguma forma, em governos e sociedade civil atitudes efetivas e necessárias pela vida e permanência das últimas sociedades livres. Saudações Indigenistas
Rosa Cartagenes
Frente de Proteção Etnoambiental Cuminapanema-PA