segunda-feira, 29 de outubro de 2007

ADEUS, AZIZE!

Leila Jalul


Tá apanhando? Engula o choro. Se chorar, apanha de novo. Isso é apenas uma brincadeira, claro. É da educação medieval, do aprendizado remoto, do direito de propriedade dos pais sobre os filhos.

Nos tempos modernos isso seria afronta. Apanhamos, todos nós apanhamos. Choros contidos, todos contivemos. Mágoas duradouras também ensinam. Exemplos de vida nem sempre são catalogados e impressos com letras ditadas pelo amor e pela ternura. Vale a pena apanhar, não com chicotes, mas com o sofrimento, o melhor professor.

Mamãe se foi na tarde de sábado, aos 83 e um pouco mais, deixando exemplos. Abriu a mente e o coração de cada filho seu para o entendimento de que o amor que é amor repreende, limita, cria termos, espanta medos, afasta o ódio, traz lógica, esbanja compreensão e conduz à caridade com o próximo, com os carentes, tanto os de alimento quanto os de afeição.

Mamãe, a mais humilde de todos os irmãos que conheceram o muito, bastou-se com o menos do menos. Para que ter três pares de sapatos se só dois pés possuía? Odiava o pão estragado que não fosse entregue antes aos que dele necessitavam.

- Ponha no seu prato, filho, aquilo que a sua fome pedir. Nem mais, nem menos. Filho, pense na guerra, nos refugiados, na crianças sem brinquedos. Não faça de cada ano de sua vida o único motivo para comer bolos confeitados. Há crianças que não vivem um ano por causa da fome. Agradeça cada momento de sua vida. O vivido e o que virá, se for do desejo Dele. Somos mortais. A riqueza e a pobreza não podem ser o significado do viver. O significado da vida é distribuir o pouco e o muito, pois somos abençoados e felizes. O nosso pouco é muito. Demais aos olhos do Senhor - ensinava.

Com esta filosofia, com certeza, jamais seria rica. Rica do ponto de vista da rasteirice dos conceitos da riqueza. Se foi exemplo, se foi fiel aos ensinamentos de seu pai, em parte, de sua madrasta, em tudo, mamãe foi a detentora da maior fortuna do Universo. Não deixou herança para cachorros nem papagaios, mas deixou claramente definida a noção do brilho de ouro dos valores morais. Se alguém mijar fora do caco, não foi por falta dos seus conselhos e convicções.

Seu baú estava abarrotado pelo carinho dos filhos, pela amizade e dedicação do médico – doutor Rinauro Santos, o pai da Bia, o médico que qualquer cristão gostaria de ter, nos momentos de necessidade. Já não cabia mais a bastança e o amor pelo aconchego do fisioterapeuta Edinho (Edjailson), de quem gostou como amante e namorado, para um futuro, claro. Um agradecimento especial para Célia Rocha. Também faz parte do baú de ouro.

Adotou de coração, como se filhas fossem, as técnicas de enfermagem Nete, a grande, Nete II, a francesa, Pâmela, a sua Jane Mansifield, e Olga, a turca Ayache, em cujas mãos deu o adeusinho final.

O resto da tropa de choque também tem nome. Também tem muita, muita, muita importância. Foram os obreiros. Fatinha, Delcídia, Lucíola, Preta, Tonha, Ana Hilda, a amazonense de bunda arriada, Luís, o taxista, o povo da White Martins, os padres, os pastores, os kardecistas, a Geiza da farmácia homeopática, a Kátia, da Aldeia do Ser, com seus Reikes, a Juliana, da hidroginástica, e Margarida, a psicóloga que nada ouviu, por não ser mais necessário confessar.

Todos foram importantes. E a todos só podemos expressar um agradecimento e uma recomendação: A riqueza de Azize é e maior riqueza: "Se reclamar, apanha. Se chorar, engula o choro. Ou apanhará sempre".

Latif, Léa, Leila, Lígia, Manoel, Francisco e Calil. Os filhos de Azize.

9 comentários:

Anônimo disse...

Conheci Dona Azize desde os primeiros momentos em que vim para o Acre, há quase 30 anos. Mãe da Leila, que era a amiga de todos e todas que aqui chegavam, todos e todas que aqui já viviam, todos e todas que aqui nasceram e que sonhavam com uma sociedade mais justa, mais solidária, mais humana.

Era meados da década de 70. Havia algumas iniciativas de organização social e política, de uma forma diferenciada, com um novo olhar sobre o jeito de pensar a história de um povo. Tudo isso era discutido em vários momentos, e, especialmente na casa da Leila, de forma mais descontraída, mas nem por isso menos séria.

E lá, num canto da sala ou da cozinha, havia um par de olhos atentos, que a tudo acompanhava maternalmente. Era olhar de consentimento de que podíamos invadir sua casa, seu espaço, mas que nunca poderíamos ultrapassar os limites do respeito que aquele par de olhos maternalmente nos impunham.

Eram os olhos da dona Azize. Por alguns momentos nesta minha trajetória de paulista com vontade de ficar para sempre no Acre, cheguei a morar na casa da Leila, que me abrigava sem nada cobrar. Posso afirmar que sentia na dona Azize uma fortaleza de mulher, uma força invejável. Mesmo com idéias diferenciadas, o ideal de justiça nos unia.

Na minha história pessoal, quando ousei ultrapassar alguns limites do que era permitido, dona Azize não me censurou. Sabedoria. Pois é claro que ela já antevia que “muito riso é sinal de pouco ciso”, mas nunca questionou a minha vontade de realizar os meus desejos “proibidos”. Nunca me impediu de ficar ao seu lado. Por preconceito ou por moral, sempre me permitiu estar ao seu lado, assim como uma âncora.

Até mesmo naqueles instantes em que, de certa forma, tive que “pagar” pela ousadia, pela vontade extremada de ir além da finitude da liberdade imposta pela sociedade, tive o privilégio de ter dona Azize do meu lado, me ajudando a superar, a ultrapassar, a vencer.

A afinidade de aceitação, a cumplicidade da dona Azize, de todas filhas e filhos que sempre me aceitaram e me permitiram conviver em diferentes momentos no interior da família, sempre me fizeram um bem imenso.

Faço questão de deixar registrado esse depoimento. Dona Azize teve um papel de grande importância na minha vida, substituindo o carinho referencial da minha família de origem, ao permitir que sempre que eu precisasse, pudesse ir me aconhegar ao lado de toda a ninhada dela, não em uma convivência de visitas continuidadas, de presença constante, mas numa relação que permitia a nós duas uma honestidade de afeto nos momentos em que nos encontrávamos. Olho no olho, parceiras das fumaças e cafezinhos até quando a saúde lhe permitiu ter no bolso daquela vestimenta que os mais antigos conhecem como “vovó”, uma carteira de cigarro sempre cheia.

- Minina! Tu ainda fuma? Então venha tomar um gole de café!

Sem precisar ser piegas ou podendo até ser sob o olhar diminuto daqueles que são privados de verdadeiras amizades, me despedi ontem dela. Com uma vontade não revelada, até o presente instante em que rabisco este comentário, também ousado diante da beleza do texto da Leila. Pois é, com uma vontade de que a gente ainda possa se encontrar em outras paragens nesta imensidão deste misterioso Universo. Valerá sempre, Azize, ter o seu olhar me orientando.

Anônimo disse...

Leila, mesmo sem conhecer pessoalmente tua mãe, vendo o sembalante dela, ai, sentada na rede, me senti órfão.....
Beijos.
Carlos Z O Junior

Anônimo disse...

Mulheres extraordinárias, abnegadas, capazes de uma doação absoluta ao papel de mães, companheiras de fidelidade completa, sábias em suas simplicidade sabiam como ninguém enfrentar as durezas de uma vida difícil, dura, foram personagens fundamentais na construção desse rincão acreano. Dona Azize é um dos exemplos completos dessas personagens da nossa história. Integro-me solidário à saudade infinita que toma conta de Leila, Latif, Léa, Lígia, Manoel, Francisco e Calil. Tenho a lamentar que não tive a oportunidade de um último abraço, há tempos não nos viamos. Leila, em algum momento, quando olharem em direção ao infinito, em algum lugar do céu, verão uma nova estrela brilhando.

Mário José de Lima

Anônimo disse...

Compa Leila,

Pude compartilhar de algumas puxadas de orelha que Dona Azize deu nos filhos já "crescidos" e, confesso, achava uma graça!

Que todos fiquemos com suas sábias palavras.

Saudades!

Compa Iara.

Anônimo disse...

Leila
Meus sinceros sentimentos pela passagem de sua mãe. Na juventude junto com Calil, pude ver com ela sempre foi amada e respeitada.
beijos

Anônimo disse...

Célia,Zamith, Mário Lima, Companheira Iara e anônimo (possivelmente o Natinho),nunca imaginei que fosse tão fácil entender a morte (pelo menos a dos outros, claro!).
No caso de mamãe, os que a conheceram, os que não, fiquem certos de uma coisa, ela foi uma pessoa rara. E assim deve ser pensada e recordada.
Neste exato momento, até saí de perto, está sendo feita a partilha dos seus pertences:
- o oxigênio portátil vai para uma garotinha que sobrevive na UTI, para que possa, um dia, dar uma voltinha na cidade, parar na Gameleira e olhar para o rio acre;
- a cadeira de rodas e a "pinicona", que acopla no vaso sanitário, vai para o Seu Antonio Lopes, soldado da borracha, o fazedor de daime da igreja da barquinha do Chico. Tá velhinho e não se locomove mais;
- os medicamentos e acessórios da máscara de respiração irão para a fundação hospitalar e para outros enfizêmicos que são tratados em casa. Tem com fartura, pois eram comprados para estocar;
- as poucas roupas e sapatos para uma comunidade do ramal da estrada de Boca do Acre;
- as fraldas descartáveis, em caixas grandes, para a coordenadora do sopão do bairro montanhês, que quebrou a bacia;
- a foto do menino Jorge Viana será mantida em seu quarto, no mesmo lugar, juntamente com a imagem do Sagrado Coração de Jesus. Mamãe era sacro-profana. Quem não for, levante a mão!;
- as bonecas irão para as bisnetas, ela tinha uma coleção.
Sobrou apenas a máquina de costura SINGER, da década de 40. Aí é que está o nó.Ainda funciona, é macia e silenciosa. Aguardaremos até encontrar um felizardo.
Estou feliz, acreditem.
Estamos, melhor dizendo.
Os exemplos foram partilhados no decorrer. E serão repassados aos que estão depois de nós.
Estamos todos refrescados, sob a copa de uma árvore frondosa, bebendo água fresca de uma vertente que não secará.

Leila

Anônimo disse...

Amiga Leila,

Lendo o texto da Célia Pedrina, revivi momentos que também compartilhei com você e sua família em sua casa, onde fui acolhida quando cheguei em Rio Branco, em 77. "Morava" no hotel Inácio, ao lado, aguardando uma casa prometida pelo senhor reitor, e você achou que eu não estava bem instalada e precisava de um espaço mais aconchegante, familiar. Cofesso que, naqueles tempos, eu não tinha a compreensão que tenho hoje do significado daquele ato de carinho, de acolhimento. Eu era muito "doidona" e a vida passava por mim e eu corria atrás. Mas pudemos vivenciar muitos bons momentos, principalmente nas noites de serestas ao luar, compartilhando repertório musical da mais fina estampa, entre mpb e músicas latinas. Belas lembranças.

Sua mãe, via pouco, algumas vezes na cozinha, tomando um café, conversas raras. Tenho um lado reservado que me deixa bicho-do-mato e bem mineira, apesar de goiana.

Leila, são momentos difíceis esses, de perdas, de luto. Passei e ainda estou passando com a despedida de minha mãe, em julho, de forma repentina. Mas também são ricos, quando podemos sentir que a vida que se foi deixou bons rastros e neles podemos nos guiar, nos confortar e fortalecer referências e laços afetivos. Incrível como os ensinamentos, as palavras, as recomendações, o ser, enfim, se torna tão presente em sua ausência.
Querida amiga, fique com Deus, e que dona Azize faça uma viagem feliz. Abraço ao Francisco.
Keilah

Anônimo disse...

Querida Leila,
Venho acompanhando seus escritos como também a saúde de D. Azize desde que tomei conhecimento desse ótimo blog. Portanto foi com muita tristeza que soube de sua passagem no último sábado.
Quando vi a foto da rede, fiz uma viagem no passado para mais de 40 anos e vizualizei o semblante dela quase igual ao da foto. Parece que o tempo não passou ali. Lembrei daquela casa perto do Colégio das Freiras, da loja... Quando vc fala desse momento reflexivo à sombra de uma árvore frondosa, dá para imaginar nítidamente os pensamentos rápidos sobrepostos que lembram os exemplos de uma longa e exemplar vida.Um beijo carinhoso em vc e em seus irmãos. Leninha Maia

Silvana disse...

Querida Leila,

Acebei de ler a notícia do faleciemnto de sua mãezinha, meus pêsames, que Deus guarde sua alma e que repouse em paz,
Meu pensamento e carinho para vc,
SIlvana