sexta-feira, 31 de agosto de 2007

MEMÓRIA E IDENTIDADE

Fátima Almeida

A memória e a identidade são dois conceitos que se constroem mutuamente, de modo que a eliminação de um é a eliminação de outro. Na primeira gestão de Gregório Filho como presidente da Fundação Cultural do Estado, o antigo prédio da Radional foi reformado e adaptado para instalação de um Museu do Seringueiro. Estudantes e turistas podiam adentrar no recinto a qualquer hora e se deparar com uma casa de seringueiro feita de paxiúba com todos os apetrechos da lida diária de um seringueiro, afora exposições, ambiente para projeção de vídeo, relacionados à temática.

No anexo, uma exposição permanente de Hélio Melo, artista plástico acreano que mais se aproximou de uma arte autenticamente amazônica, desde a temática, desenho e iluminação, afora o fato inconteste de ser uma arte vinda de baixo, uma arte de resistência, portanto. Além disso, Gregório Filho criou um programa de pesquisa sobre a cultura dos seringais, aberto a todos interessados, contratando inclusive, orientadores.

Na gestão “democrática” do PT, o espaço foi reformado e transformado em Museu dos Autonomistas, com muito requinte, diga-se de passagem. O movimento autonomista tem vários significados, conforme o olhar do historiador. A meu ver foi uma luta das oligarquias locais pela elevação do Território Federal do Acre à condição de mais um Estado patrimonialista.

Hoje, naquele espaço, podemos ver uma galeria de fotografias de todos os governadores. Qual a memória que se quer perpetuar e acondicionar às novas gerações? A dos Chefes de Estado, claro. A memória dos trabalhadores, bem como suas formas de resistência, desapareceram do cenário. Hoje temos populações desenraizadas e o vazio deixado pelas lideranças dos movimentos sociais, cooptadas, está sendo preenchido por promessas enganosas de todas as vertentes do oportunismo.

Esse é o modo como os governos, no Brasil, eliminam as possibilidades das classes populares sentirem-se parte da história, serem excluídas da participação nas decisões. E, desse modo, os governantes ficam à vontade para moldar a cidade conforme os interesses das empreiteiras, construtoras e concessionárias de carros. O povo não se sente parte do processo e por isso ocorrem as depredações, as queimadas, a violência de que temos notícia, a toda hora.

No Brasil, os projetos de urbanização e modernização, desde o início da República, têm por padrão a eliminação das classes pobres do centro da cidade. Os centros são espaços nobres, para as classes médias, turistas e ricos. Os pobres devem ser varridos para a periferia e desse modo excluídos também do exercício da cidadania, dos espaços decisórios. E assim os problemas sociais são varridos para debaixo do tapete.

O espaço urbano é sempre ocupado de acordo com os interesses das construtoras, da especulação imobiliária, das empresas de transportes, que são aqueles que decidem. E, que desenfreados, elevam os preços de compra, aluguéis e transporte de forma insuportável para as classes baixas, afora os danos ambientais, tais como eliminação de áreas verdes urbanas e excessiva pressão sobre os esgotos que vão dar no rio Acre. Quanto a isso, aos danos, todos nós pagamos a conta, inclusive os que ainda nem nasceram.

Não existe, portanto, arte pela arte. Nem mesmo a ciência pode ser neutra. Não pode haver beleza na mentira, no engôdo, na omissão, apenas desgosto. A estética e a ética estão também uma para a outra. Não é por isso que Abaporu é a obra das obras do modernismo brasileiro? A gestão dos órgãos de cultura não pode fugir às determinações históricas. Ou é comprometida com a memória e a identidade das classes baixas, ou é passiva e conivente com os interesses dos tubarões, que controlam os governos em todo o mundo.

Para a classe artística o problema está colocado nesses termos: ser ou não ser Estado. Recomendo o historiador Sidney Challoub que aprofunda essa discussão a partir de seu trabalho sobre demolição dos cortiços no Rio de Janeiro, quando teve início a era das favelas naquela cidade, e também o filme sobre Milton Santos, grande alma, geógrafo baiano, marxista, que ganhou o prêmio Júri Popular no último Festival de Cinema de Brasília, com narração de Fernanda Montenegro.


Fátima Almeida é historiadora

10 comentários:

Anônimo disse...

Tudo Isso é uma verdade pura? Sem contestações? A militância cultural de uma sociedade deve buscar excluir as manifestações da industria cultural e das classes dominantes? Devemos nos isolar das influências culturais impostas por grandes grupos de comunicação? E por fim: A militância cultural deve estar ligada unicamente aos braços do poder estatal? Concordo com o belo artigo da colega Fátima Almeida. Muito bem escrito, bem articulado. Acho que o Estado pode melhorar muito sua atuação. Mas acho também que a sociedade civil organizada pode melhorar mais ainda sua participação no processo de Memória e identidade. A classe artística, por exemplo, alimenta um rancor desmedido para colocar a culpa sempre no governo. Se o governo não dá dinheiro, então a arte não ocorre, o projeto não se realiza. Depois o que ouvimos é só lamentação. Ora, a arte não tem nada a ver com licitação ou planejamento orçamentário. A cultura popular não nasce por decreto. Por outro lado, a máquina pública (por mais que tenha as melhores 'intensões') não utiliza os parcos recursos com objetividade e foco. Infelizmente o que há hoje é uma tendencia a se valorizar mais a cultura eletrônica de massa, que é de maior visibilidade e dominada pelos detentores do capital globalizado. Não se foca, nem aqui no Acre, nem em qualquer outro lugar, nas incubadoras populares de cultura. O dinheiro público, ainda que com exceções, é gasto politicamente. E a classe artística, assim como os pensadores, os cientistas, os acadêmicos estão desarticulados, reclusos em seus egos inflamados e na solidão. Enfim, há uma coisa meio que "sujo e mal lavado". Os dois não se entendem bem e quem perde é a cultura como um todo.

Anônimo disse...

Lembrei do velho Matias, do Barracão do Aeroporto Velho, do Bacurau, do velho Cine Clube Aquiry, da Núbia Celestino, do Couraçado Potekim, Noites de Cabíria, com Masina e tudo, da sala da antiga Escola Normal Lourenço Filho, quando tínhamos de limpar as cadeiras com óleo de peroba para podermos sentar. Lembrei até do Zé Chumbinho, do Arquilau, o Doutor. Lembrei da Associação das Lavadeiras, da Dona Raimunda, a grande líder, do Arena do Sesc, Fátima Ariston e Jaime, das brigas para liberar películas na PF. Lembrei do Elson, do Mapinguari, do Cabeção da Keilah.
Dinheiro? Que dinheiro?
Acho que estou lembrando demais. É melhor esquecer.
Mas, enfim, tem coisa boa, mesmo financiada, acontecendo por aí.
Leila
PS. Esqueci da Célia e do Lhé.

Cartunista Braga disse...

Ah! Saudade do Casarão!

Anônimo disse...

Não sou estátua de sal.Olho para frente. O problema é que aqui no Acre o que parece novo é velhíssimo.

Anônimo disse...

Cansei...de estar cansado de tanto cansasso.Ufa!

Anônimo disse...

Não há nada de novo sob o sol e sobre a terra.Agora tem gente que já venceu o prazo, espaço de tempo dentro do qual se faz determinadas coisas.A memória, por irônia da vida, é de quem já não possui mais a falculdade de reter idéias ou noções adquiridas;reminescências;lembranças a historiadora como memorialista cultural é digna de ficar na memória.Vida longa para a historiadora e sua memória brilhante!

Anônimo disse...

Professora Fátima,
vai esse trechinho de uma música que a imortal Elis Regina canta:"...o trem que chega é o mesmo trem da partida...a plataforma, é a vida desse lugar".

Saramar disse...

Concordo com a professora.
E os governos são culpados sim pelo alijamento dos cidadãos para os buracos do mundo, pela especulação imobiliária e pela morte da cultura popular.
Se houvesse govverno interessado em manter a cultura popular, fotos de governantes não substituiriam a do povo que é quem realmente faz a cidade, o estado e o país.

beijos, Fátima, Altino.

Anônimo disse...

Belo artigo, Fátima. Você não imagina como é difícil também por aqui, assistindo, há 22 anos, a passarela dos que chegam e dos que saem por este ministério, cheios de entusiasmo renovador. Cada um querendo começar tudo de "novo", em nome da modernidade, sem qualquer compromisso com os recursos que já foram empregados ou respeito pelos acordos já firmados com a sociedade. É uma pena. São poucos os que se preocupam com a cultura de fato - são gestores, tanto aqui como em qualquer outra instituição.
Mas acho que temos de separar o papel de cada um e também darmos conta de nosso recado, como realizadores no campo das artes e da cultura em geral, de forma independente (será possível ?). A geração atual vive um processo de mutação profunda, no reino das fantasias eletrônicas e sem amparo referencial de suporte ético e filosófico. Como podemos contribuir para que as construções edificadas no passado possam ser adubos para o que se produz hoje no mundo da modernidade?
Abraço
Keilah

Anônimo disse...

Keilah, eu não me deixo impressionar pelo imobilismo brasileiro. Mudanças profundas estão acontecendo no planeta por toda parte. Eu estou participando da semeadura e não me deixo abater pelos avessos.