domingo, 17 de junho de 2007

OS ÚLTIMOS DOS MOICANOS

A saga e o cotidiano do restrito grupo de sertanistas que dedica a vida a proteger índios isolados

Felipe Milanez

São 3 da manhã. No posto de fiscalização Xinane, às margens do rio Envira, em uma área de densa floresta amazônica na fronteira do Acre com o Peru, o sertanista José Carlos dos Reis Meirelles está com os olhos arregalados e desperto. Desde que parou de fumar quatro maços de cigarros por dia, há alguns anos, Meirelles dorme bem. Gosta de acordar antes do sol nascer, em meio ao barulho e à movimentação dos poucos funcionários que trabalham no posto. Nessa hora, o mosquito carapanã, que ataca à noite, já foi dormir, enquanto os piuns, que comem de dia, ainda não acordaram, e a pele ganha um alívio. Nessa hora, também, "os parentes, que ficam ali no mato, paradinhos, às vezes o dia inteiro, enxergam a movimentação e desistem de mexer com a gente", diz. Os "parentes" são os índios autônomos, isolados, que vivem na região.

No ano em que a Fundação Nacional do Índio (Funai) completa 40 anos, Meirelles, o "ermitão do Acre", é um dos poucos remanescentes de indigenistas e sertanistas que dedicaram a vida a catalogar e proteger tribos isoladas. Apesar de glamourizada pela saga dos irmãos Villas Bôas, Orlando, Cláudio e Leonardo, que se tornaram figuras midiáticas, reconhecidas em todo o mundo, a labuta é árdua. Os obstáculos são muitos e grandiosos: doenças capazes de provocar a morte, índios dispostos a se defender a qualquer custo, fazendeiros, madeireiros e pistoleiros, prontos a preservar suas terras à bala, animais selvagens. Em campo, há dez funcionários nas cinco frentes de proteção espalhadas pela Amazônia Legal. O salário médio é de 1,5 mil reais. A maioria, como Meirelles, recusa os holofotes e leva uma existência ascética e anônima. E seguem à risca o lema do marechal Cândido Rondon, pioneiro na política indigenista: "Morrer se preciso for, matar nunca".

"Vir pra cidade é bom. Dá para tomar cerveja, gelada ainda por cima, banho em chuveiro, ligar a tevê e ver besteira, ficar tranqüilo com a mulher", afirma Meirelles, enquanto aguarda sair do forno uma lasanha de peixe preparada pela esposa Teresa. Em uma rara e curta folga, em fevereiro deste ano, o indigenista foi descansar em Feijó, no Acre, onde vive a família. "A Amazônia é legal na tevê, lá de cima do avião, mas vai agüentar esse monte de mosquito, pium, carapanã, cobra, onça, carrapato, bicho-do-pé, espinho. Aqui é difícil", brinca.

Primo do cineasta Fernando Meirelles, diretor de Cidade de Deus, nascido no interior de São Paulo, ele reclama da boca para fora. Pior, para tipos como ele, seria assumir um cargo burocrático na sede da fundação em Brasília, entre quilos de papéis e reuniões arrastadas. "Eu não suportaria", confessa Meirelles. Em fevereiro do ano passado, ele assumiu a Coordenação-Geral de Índios Isolados, em Brasília, no lugar de Sidney Possuelo. Não agüentou três meses no cargo. Preferiu voltar para o meio do mato.

Os sertanistas ainda em atividade dividem-se em dois grupos. Ou são idealistas de classe média, criados em cidades no Sudeste, ou filhos de migrantes que foram atrás de uma vida melhor na Amazônia. Este é o caso de Afonso Alves da Cruz, o "Afonsinho", nascido em São José do Xingu, reconhecida terra de pistolagem. Altair Algayer e Rieli Franciscato são filhos de migrantes do Sul que se estabeleceram em Rondônia, trabalharam para fazendeiros e "mudaram de lado" depois de conviver com o pessoal da Funai. Antenor Vaz, Marcelo dos Santos, Wellington Figueiredo e Sidney Possuelo são do time dos que vieram das grandes cidades, foram em busca de aventuras e se envolveram na ideologia indigenista nacional em vigor nos anos 1970.

Em comum, possuem o caráter destemido, a defesa intransigente dos povos indígenas e aversão aos corredores burocráticos. Preferem a mata, apesar dos perigos. Meirelles, por exemplo, quase morreu em 2004 durante um ataque de índios da etnia masku. Uma flecha atravessou seu rosto, entrou pela bochecha e saiu pelo pescoço, enquanto pescava em um igarapé próximo ao posto Xinane. A primeira reação foi pular do barco e correr pelas águas rasas. As flechas zuniam perto do ouvido. Após várias ligações para a Funai, o Exército e o gabinete do então governador Tião Viana, Meirelles foi resgatado por um helicóptero militar. Menos de um mês depois, ainda em recuperação, voltou ao posto na floresta para cuidar dos "parentes brabos".

Afonsinho tem história semelhante. No fim da década de 70, ele foi escalado para fazer contato com um grupo da etnia arara que atacava operários da Transamazônica, o megalômano projeto da ditadura militar que pretendia cortar a floresta com a estrada. "Eles só deixavam os ossos, parece que comiam tudo", recorda o sertanista, que tem hoje cerca de 70 anos (ele mesmo se confunde com a idade desde que a falsificou para entrar no antigo Serviço de Proteção ao Índio, predecessor da Funai. Só maiores de 18 anos eram aceitos).

Em uma das incursões para tentar o contato, a equipe da Funai foi atacada. Afonsinho conta os detalhes: "A primeira flecha entrou aqui, sobre o pulmão. A outra, quando eu já estava caído, mais embaixo, pegou o meu rim". Depois de ser flechado, o senhor ainda voltou lá? "Voltei, claro. Sou amigo deles, me dou bem, falo a língua", narra o sertanista, que atualmente chefia o posto Arara, na terra indígena Cachoeira Seca do Iriri. Afonsinho dedicou a vida ao contato com os índios. O pai, cearense de nascimento, era seringueiro e não podia ouvir menções a índios sem correr para pegar uma espingarda. O filho, ao contrário, nunca disparou um único tiro contra os nativos. No ramo desde 1951, virou uma espécie de amuleto na Funai de Altamira, respeitado pelos funcionários e pela burocracia em Brasília. Trabalhou na pacificação dos caiapós, que recebiam os intrusos a golpes de tacape, e dos araras. Em 1996, fez contato com os corubos, chamados de "caceteiros", no Vale do Javari (AM).

A maioria dos sertanistas recusa, porém, o rótulo de herói. "Dedicar a vida para cuidar de índios, mais do que uma ideologia é uma política pública nacional. É uma história feita por muitos", afirma Antenor Vaz, 20 anos de trabalho com índios, infectado pela malária dezenas de vezes, ameaçado de morte outras tantas. Vaz trabalha atualmente no Vale do Javari e mora na cidade de Atalaia do Norte (AM), mas decidiu deixar o serviço público, desanimado com as condições precárias de trabalho. "Não tem gasolina nem para ligar o motor do barco", reclama. Deixará dois discípulos em Rondônia, treinados na década de 80. Rieli Franciscato atua na terra indígena uru-eu-uau-uau. Altair Algayer chefia a frente de proteção etnoambiental Guaporé, em contato com os canoês e os akuntsus, etnias que ajudou a salvar da extinção, além do ainda isolado "índio do buraco", cuja existência foi descoberta em 1997. Algayer, filho de migrantes catarinenses, foi alfabetizado por Vaz nos trabalhos de campo.

A política indigenista brasileira, que segue uma linha protecionista traçada nos últimos cem anos, foi precursora no mundo. A Funai, mesmo com os recursos escassos, tem sucesso relativo em preservar as tribos do avanço do progresso. "No fundo, pensando bem, o nosso trabalho não é proteger, mas servir aos interesses de expansão da nação. É triste pensar assim, mas assim é que é", reflete o sertanista Welington Figueiredo. Antigo colaborador de Sidney Possuelo, que criou o Departamento de Índios Isolados (atual Coordenação Geral de Índios Isolados) em 1989, Figueiredo, oficialmente aposentado, continua na ativa. Volta e meia, é enviado em curtas expedições.

O sertanista anda incomodado com o extermínio de etnias no Maranhão. "Sei que as coisas são difíceis, mas não dá para aceitar perder a briga com os madeireiros. Eles estão matando todos os guajás", denuncia. "Hoje tem a Funai, o Ibama, a Polícia Florestal, a Polícia Federal. Como é que não se consegue expulsá-los das terras indígenas?", pergunta.

Foi entre os guajás, uma vez, que Figueiredo sofreu uma séria ameaça. "Uns jagunços atacaram, nos assaltaram e prometeram que, se a gente voltasse, matariam. Voltei e não me mataram", afirma.

Outro avesso aos gabinetes refrigerados e às gravatas é Marcelo dos Santos. "Meu lugar é no mato. Essa coisa de usar sapato e cheirar fumaça não é comigo", afirma.

Nascido no interior de São Paulo, Santos trabalhou a vida toda com os nambiquaras de Rondônia. Ganhou respeito ao impedir a entrada de madeireiras nas aldeias e ficou famoso ao intermediar o contato com duas tribos isoladas que haviam se escondido na floresta após quase ser dizimadas nos anos 80. Foi ele quem descobriu o "índio do buraco", em 1997.

Em parceria com Algayer, Santos passou mais de uma década a vasculhar os matos nas fazendas de Corumbiara, a contragosto e sem autorização dos proprietários, em busca de vestígios dos remanescentes das tribos da região. Em conversas de botequim, ele sempre ouvia referências a um "índio pelado".

Em 1995, na mesma semana do massacre de integrantes do Movimento dos Sem Terra na região, Santos e Algayer encontraram os irmãos Pura, jovem com cerca de 20 anos, e Tiramantu, um pouco mais velha, dois dos cinco remanescentes da tribo canoê. Os irmãos guiaram os sertanistas a um grupo de sete akuntsus. Ali perto, dois anos depois do contato com os irmãos canoê, descobriram a maloca do "índio do buraco", que vivia solitário, escondido e amedrontado.

À época, Santos e Algayer foram acusados de "inventar índios" e sofreram ameaças de fazendeiros e grileiros. Aposentado, Santos acabou afastado de Corumbiara. Algayer foi transferido para Minas Gerais, onde passou a trabalhar com os índios maxacali. No período de afastamento, Santos tentou trabalhar no terceiro setor. "As ONGs são muito organizadas, mas é diferente de trabalhar para o Estado, não tem a mesma legitimidade", afirma. Santos é o atual coordenador-geral de Índios Isolados da Funai.

O antropólogo Mércio Gomes, ex-presidente da Funai, afirma que os indigenistas, além dos perigos da floresta, enfrentam a desconfiança de burocratas e da academia. "A Funai foi criada pelos militares, como se viesse para substituir o SPI e dar cabo dos índios, apressar sua assimilação, fazê-los cidadãos. Mas a própria fundação não deixou que isso acontecesse", afirma o antropólogo, que tentou de forma infrutífera, durante os três anos e meio de mandato, aprovar um plano de carreira para os servidores e manter os quadros mais experientes em atividade. "Havia indigenistas que não deixaram que isso acontecesse. Foram criadas novas gerações que se meteram à luta, seguindo o exemplo, a moral e o pensamento do marechal Rondon", diz.

Realmente, são comuns no meio acadêmico as críticas a Rondon, tachado de autoritário e acusado de querer apenas dominar os índios. Os atuais sertanistas enfrentam a mesma crítica, a de manter as tribos sob seu controle e evitar que elas se integrem à sociedade. Os sertanistas afirmam, em defesa própria, que os contatos tendem a dizimar os índios (quadro à pág. 14). "Não temos condições de prover saúde e dar assistência, seria um massacre", afirma Meirelles.

Quando podem, agem para impedir as aproximações. É o que tem feito Vaz no caso dos corubos, habitantes do Vale do Javari. Os índios insistem nos contatos esporádicos com os funcionários da Funai. Em maio último, 40 corubos tentaram uma aproximação para conseguir metais e ferramentas, mas Vaz evitou que ela se consumasse. A ação pode fazer a diferença entre a vida e a morte de dezenas de nativos.

Em perspectiva histórica, é possível afirmar que a luta de Santos, Meirelles, Vaz e outros não é nova, apenas atravessa outra crise em um Brasil supostamente mais moderno e desenvolvido. Antes deles, viveram luta parecida os Villas Bôas, que tiveram de aceitar um Parque do Xingu com a metade do tamanho que haviam proposto, e Chico Meirelles, morto antes de ver demarcado o território xavante que havia pacificado. Sem falar em Rondon.

Em 1849, Gonçalves Dias já alertava: "Os índios foram o instrumento de quanto aqui se praticou de útil e grandioso. Eles são o princípio de todas as nossas coisas. São seu lema o mais valoroso caráter nacional. E será a coroa de nossa prosperidade o dia de sua inteira reabilitação". Se depender dos sertanistas, a hora é agora.

Felipe Milanez escreveu para a Carta Capital. Leia as colaboracões dele ao blog. Clique aqui. Veja aqui entrevista ao blog do sertanista José Carlos dos Reis Meirelles.

Um comentário:

Anônimo disse...

Belo texto. Todo meu respeito a todos os sertanistas!

E.F.