terça-feira, 23 de janeiro de 2007

MIL DESCULPAS

Leila Jalul

O mandatário acreano assumiu aquela cadeira apenas por imposição legal. Consciente, como deveriam ser conscientes todos os mandatários, sabia que, em trinta e um dias de poder, nada lhe restava senão assinar os atos rotineiros e voltar para casa. Voltar no outro dia, assinar os papéis, e voltar para casa. E repetir isso, até que o próximo dono da cadeira assumisse o posto.

Para não ter trabalho de perguntar sobre há quantos dias estava no poder, nem quantos faltavam para sair, ele mesmo, de próprio punho, munido de um pincel atômico, uma folha de cartolina, sem régua, sem nada, desenha o mês de março e, todos os dias, ao entrar no gabinete, assinalava. De tarde, ao sair, outra tarefa indispensável era fazer um "X" atravessado. E assim, o "X" da manhã virava quase um asterisco de tarde. Um sinal da cruz quando saía e muito carinho e respeito com os seus auxiliares.

O poder atrai. Os poderosos são alvos de atração. Ainda que por pouco tempo, o poder é como azougue. Chupinhas fazem fila, normalmente para a obtenção de cargos. Não, isso não houve. Todos resolveram aguardar o outro que logo assumiria. Também foram dispensados os necessitados que vinham em busca de óculos, tijolos, alumínio e madeira.

Mesmo assim, em tão pouco tempo, não esteve de todo livre do assédio. Todos os dias, invariavelmente, por volta das 9 horas, tocava o telefone e uma voz de mulher perguntava se meu superior estava. Entregava-lhe o fone e saía do gabinete discretamente. Pensava eu que fosse a esposa ou a filha. Eu já sabia que ser discreto é regra básica na vida. No serviço público é dever.

Certa feita, após uma dessas ligações, o mandatário me solicita que, se ligasse aquela “voz” e perguntasse se o duodécimo havia chegado, que respondesse negativamente. Estava mal humorado, visivelmente com raiva, cenho franzido, quase amedrontador.

O que mestre manda, marinheiro faz. Fiquei antenada, olhando o relógio e aguardando o toque. Quando ocorreu o previsto, minha resposta estava na ponta da língua.

- Você sabe quando ele chega?

- Desculpe, senhora, não sei.

- Será que até o dia 30 chega?

- É possível, senhora, é possível.

- Obrigada, depois eu ligo.

- Por nada. Disponha.

Sem entrar em detalhes sobre o caso, o doutor pareceu mais aliviado. Por pouco tempo. Felicidade tem prazo.

A mulher surpreendeu a todos. Naquele mesmo dia, já no turno da tarde, creio que com um lenço no fone, a pergunta de sempre.

- Sim, respondi.

- Desde quando?

- Desde a semana passada, ora!

Com a retirada do lenço, lá se vem o grito.

- E como é que você me disse hoje que não tinha chegado? Tá bom. Vou aí. Agora!

Bateu o telefone na minha cara. E agora, digo eu. E agora?

- E agora, fique lá fora esperando. Diga que estou numa reunião muito importante - recomendou o mandatário, enquanto eu tremia como vara verde. Ele dava risadas. Não entendi nada. Era risada nervosa.

- Preste atenção: ela pensa que duodécimo é uma pessoa. No máximo, em meia hora ela estará aí.

Fui, zonzinha das idéias. Meu Deus, me dê uma luz. Me ajude!

A mulher chegou braba. Assim com cara de “eu pego esse cabra”. E foi logo perguntando:

- Ele está?

- Está em reunião. Posso atender?

- Sim. Quero saber se o duodécimo está aí. Se já chegou.

- Foi a senhora que ligou de manhã?

- Sim.

Olho para a janela e vejo, apontando lá fora, na subida da rampa, um conhecido. Não posso chamá-lo de amigo. Até aquele momento, pelo menos.

- Pois é, minha senhora, eu entendi mal. Peço desculpas, entendi a senhora perguntar se o Deoclécio tinha chegado. Mil desculpas, realmente foi um engano.

Ela acalmou-se e já se voltando para regressar para sua casa, adentra no recinto o Deoclécio. Quase se cruzaram. E eu feliz, quase abraço o moço, mas me contive. Apenas perguntei em voz alta:

- Tudo bem, Deoclécio?

- Tudo, e com você?

- Tudo!

Nada me foi perguntado. Segui a rotina do gabinete e lembrei que mais um dia estava vencendo naquele período de interregno - mais um "X" no calendário. Boa tarde e até amanhã.

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