sábado, 27 de janeiro de 2007

MACONHA NO XIPAMANU

Edson Carneiro

Ano de 1992, sexta-feira quente como sempre, e eu na Secretaria da Fazenda dando parecer em processos tributários administrativos, coisa que aprendi com Elzo Rodrigues, Etevaldo Gouveia, Edilson Alexandre Pinto e tantos outros. Desde cedo, Etevaldo discorria sobre os limites do Acre com a Bolívia. Pense num cara para saber tanto sobre nossos limites territoriais. Para conhecer "in loco" não tive oportunidade de conhecer outro, embora meu pai, Pedro Sipitiba, soubesse bastante, mas não conversava comigo, como o Etevaldo. As horas passavam, e o Etevaldo, pedia a minha atenção.

- Olha, o igarapé Rapirrã nasce perto de Capixaba, corre no sentido longitudinal ao da estrada de Plácido de Castro, que foi planejada pelo coronel Aguirre. Já notou que quase não há pontes nas estradas que ele planejou? Plácido de Castro, Porto Acre, Xapuri e Brasiléia, muita curvas, é certo. Com trajeto sobre o divisor de águas, mas essas correm para direita e para a esquerda, nunca atravessando a pista.

Devo confessar que ouvia pela consideração e respeito que o Etevaldo faz e fez por merecer, mas não via a hora de terminar o expediente para ir almoçar. Mas, à tarde, quando voltei, mais aulas.

- Edson o rio Xipamanu é o mesmo Rio Abunã. Quando chega a Capixaba tem uma curva à direita, o que o faz se desviar do curso do Rapirrã e correrem paralelos até se encontrarem na cidade de Plácido de Castro. Existe também o rio Ina, que corre de dentro da Bolívia, sendo Brasil quando chega na antiga estrada de Xapuri, e logo em seguida deságua no Xipamanu. A margem direita do Xipamanu é Bolívia, a esquerda consequentemente é Brasil...

E eu ouvindo com todo o respeito e consideração, mas não vislumbrava utilidade prática alguma naquela aula de história, contada por uma autoridade no assunto. Saí da secretaria às 17 horas e fui para a casa do Seu Nelson, pai do Ronivon, jogar dominó e beber cervejas. Naquele tempo eu ainda gostava de bebida alccólica. Hoje, não mais, mas sem execrar quem gosta.

Na tarde de sábado, ainda de ressaca, aparece um cliente querendo que eu o acompanhasse até a comarca de Xapuri para defendê-lo em processo criminal pois fora enquadraddo na Lei de Tóxicos. A audiência seria na segunda-feira. Ainda hesitei porque não conhecia o processo e encarar de sopetão uma audiência de instrução e julgamento não é fácil.

Após tanta insistência, concordei e acertamos a ida para domingo, às 8 horas da manhã. O cliente alugou um táxi e fomos tomando todas. Ao chegar na Fazenda Araxá, soubemos que o Airton Sena havia batido o carro e ido para o hospital. Ficamos tristes. Para acalmar os nervos, tomamos outras. Ao chegar a Xapuri soubemos que o herói estava morto.

De manhã cedo, a boca seca, os olhos vermelhos, numa pensão cujo banheiro era nos fundos. O maior sufoco para tomar banho sem molhar a toalha e nem pegar uma surra de jiquitaia.

- Edson, ainda são 5 horas da manhã. Vamos dormir mais um pouco - sugeriu o cliente.

Ao lembar da minha missão, perguntei onde ele fora preso. E ele respondeu que tinha sido do outro lado do rio Xipamanu. Bem na beira do rio? E então ele revelou que estava a uns cinco quilometros para dentro, na Bolivia. No mesmo instante a aula do Etevaldo me veio a memória e comecei a imaginar que a defesa do cliente seria moleza.

Cheguei ao fórum às 7 horas, entrei junto com o escrivão, pedi o processo, que era imenso, com quase 1.000 folhas. E eu usando a leitura dinâmica, devorava o monstro freneticamente, anotando os pontos de destaque, documentos juntados pelo advogado anterior, documentos do serviço de combate à malária da Bolivia encontrados na casa onde o meu cliente foi preso, depoimento dos agentes da Polícia Federaal etc.

Chegam o juiz e o promotor, a audiência atrasou, como sempre, mas começou às 9h30. A testemunha respondia às perguntas e eu atento vendo que nenhuma ainda chegara ao meu raciocínio. Na minha vez, bastou apenas perguntar se a margem direita do Xipamanu era Brasil.

- Doutor, muito me admira que o senhor não saiba que a margem direita do Xipamanu é Bolivia - respondeu a testemunha com desprezo e espanto.

Os policiais haviam afirmado que atravessaram o rio e andaram ainda uma hora para destruir a plantação de maconha. Haviam violado um principio básico da soberania, respeitada entre países limítrofes. Pedi ao juiz para interromper a audiencia, com a aquiescência do promotor, e lhes fiz ver que aquele caso poderia se enquadrar no princípio da extaterritorialidade da lei penal se o delito tivesse sido reprimido pela polícia boliviana.

O processo foi desaforado para Rio Branco, com o conhecimento de limites do Etevaldo, cuja lição intensiva aprendi num dia. Se o meu cliente foi condenado? Aí é outra história.

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