sábado, 23 de dezembro de 2006

A FERRAMENTA DO AMOR

Walmir Lopes

O Acre vivia o crepúsculo da década de 50. O menino, nascido na maternidade Bárbara Heliodora e na época já com seis anos, só falava e entendia castelhano. Chegou de Iquitos, Peru, para aonde tinha sido levado quatro anos antes, arrebatado do lar original na Cadeia Velha pela tia paterna, que acumulava também os supostos direitos de madrinha, além da cumplicidade com o irmão, garboso tenente da Guarda Territorial. Entre os tais supostos direitos, arrogara-se o de cortar prematuramente os laços físicos e emocionais entre mãe e filho, à revelia deste e ignorando completamente os apelos surdos e as lágrimas represadas daquela que, vítima do autoritarismo do marido, aceitava sem protestos a retirada a sangue frio, mesmo que a título precário, de um dos sete pedaços que restavam de seu coração. Sim, que restavam, pois há pouco tempo, embora anestesiada pela fé, Deus lhe arrancara o oitavo pedaço em caráter definitivo.

Mas a mãe do menino não era madrasta e exigiu, sob a pressão do amor que tudo desafia, que lhe devolvessem seu pedacinho de vida. E o menino foi trazido de volta ao lar. A alegria durou pouco. O tenente se irritava porque não entendia o que o menino dizia e tome pau . Às vezes acontecia o inverso. O tenente se irritava porque não era entendido pelo menino e tome pau novamente; o menino não entendia, assim como não entende até hoje, porque até no inverso, a porrada só sobrava para ele. E a pequena Babel seguiu seu curso tumultuado, com intervenções aqui e ali do anjo da guarda do menino para livra-lo dos eventuais vinagres do tenente.

Estes e mais alguns acidentes de percurso, iriam gerar uma bomba de efeito retardado que explodiria anos mais tarde quando, o já um pouco mais velho tenente, inconformado com a realidade de seu afastamento da ativa e os crescentes questionamentos e independência dos filhos, quis transformar seu lar numa extensão da antiga caserna. Certo dia, passados apenas uns seis meses da chegada do menino e já que não há mal que sempre dure, nem bem que nunca se acabe, por motivos de saúde da irmã mais velha do menino, a família dele mudou-se para o Rio de Janeiro. Quem ficou pra trás? Adivinhem! Pois não foi mesmo o menino? “Mas certamente desta vez, a separação não seria tão doída quanto a primeira”, ele pensou. Um irmão mais velho ficara com ele.

Se tivesse que sofrer não sofreria só. Além do mais teria um substituto à altura para seu anjo da guarda oficial. Relativamente até mais poderoso que ele!! Que viessem, os tenentes, capitães, majores, coronéis, generais e até marechais da Guarda Territorial!! E levados por alguns amigos e parentes, seguiram pela da manhã num pequeno batelão capitaneado pelo primo Mauro rumo ao seringal Quixadá, do anjo substituto. Além de um banzeiro forte, na altura do seringal Catuaba, causado por uma chatinha a vapor que subia na direção de Rio Branco, chegaram sem mais problemas. Era um dia de domingo. Claro e quente, do jeito que menino gosta.

O anjo substituto desceu o barranco lentamente, apoiado em dois anjos auxiliares estranhamente vestidos de preto, olhou para o menino e seu irmão, depois acolheu os dois sob as asas de uma forma tão doce e marcante que até hoje o menino não esquece o perfume suave de alfazema que ele exalava. Em seguida encaminhou o menino e seu irmão aos dois anjos auxiliares, que sorrindo, os guiaram pela mão e seguiram em frente, a contar estórias pitorescas (pois anjo não mente), os meninos às gargalhadas, até o barracão do seringal, que serviu de paraíso durante dois anos ao menino e ao irmão dele. Durante o dia a dia o menino foi observando também que os dois anjos auxiliares só usavam aquela roupa estranha e preta para algumas atividades mais específicas, como rezar, conversar com anjos de mais alto escalão ou quando viajavam para terras mais distantes onde havia anjos que falavam outros sotaques ou até outras línguas.

No trabalho, na luta mesmo, usavam macacão azul ou marrom e até cáqui. Um dia, o menino observou que esses dois anjos não faziam criancinhas para criar como os outros tipos de anjo faziam. Coincidentemente, às vésperas de um Natal, aproveitando um momento em que os anjos deram uma parada estratégica para descanso (estavam encaixotando brinquedos, remédios, alimentos), não se conteve e curioso perguntou-lhes o porquê daquela anomalia, obtendo quase em uníssono a seguinte resposta:

- Deus nos fez diferentes, exatamente porque gostamos de fazer, não um, dois, três, dez ou vinte filhos. Anjos com o nosso perfil gostam de fazer filhos sem limites de quantidade. Milhões, se o tamanho da ferramenta permitir. Quanto maior a ferramenta, melhor.

O menino arregalou os olhos com espanto e sem entender bem a colocação da resposta, meio confuso, arriscou, puxando pela lógica infantil:

- Então vocês são mais bem dotados de ferramenta de fazer filhos que os outros anjos, é isso?.

- Certamente, o tamanho da ferramenta depende exclusivamente de nossa vontade!

O menino, já antevendo uma chance, arrisca:

- Se eu quiser fazer muitos filhos a minha ferramenta também pode ficar grande como a de vocês?.

- Assim você o queira - veio a resposta já meio apressada, pois ainda faltava embalar alguns presentes e o tempo urgia.

O menino, ansioso, vendo aí a grande chance de se tornar o campeão dos campeões da fertilidade masculina, senão do universo, ao menos daquele pedaço de seringal, exclama frenético, quase que em tom de exigência:

- Quero ver as ferramentas de vocês pra eu deixar a minha do mesmo tamanho.

Os anjos se entreolham discretamente, em seguida olham para o menino com um sorriso maroto, de anjos do bem, que gostam de fazer menino de besta, abrem dois botões dos respectivos macacões, colocam cada um a mão direita espalmada no lado esquerdo do peito do outro e exclamam à uma só voz:

- Aqui estão elas, menino!

A princípio o menino desaba em duas bandas, a metade pela sensação de ter sido feito de besta, a outra metade pela desesperança em relação ao futuro glorioso de sua ferramenta de fazer meninos. Enquanto isso, um batelão lotado de brinquedos, alimentos e remédios virava a curva descendo o rio, quem sabe, com destino a Boca do Acre. Alguns anos se passaram até que o menino entendesse o recado passado pelos dois anjos.

Esse menino hoje sou eu.

Foram anos de encanto envolvente na vida desse menino. Umas histórias alegres, outras tristes, outras fantásticas, todas porém maravilhosas. Após os dois anos nesse paraíso, o anjo oficial mandou buscar seu menino de volta p’ra casa. Saiu dez anos depois brigado com o tenente e passou mais dois anos no mesmo seringal, mais dois anos na vivência de coisas boas e más. Por fim, tomou rumo. Entrou por uma perna e saiu pela outra. Quem quiser que conte outra.

O acreano Walmir Lopes é comerciante de automação comercial em Olinda (PE). É sobrinho dos saudosos padres José e Peregrino. José será interpretado (veja aqui) pelo ator Antonio Calloni na minissérie "Amazônia - De Galvez a Chico Mendes", de Glória Perez.

Um comentário:

Anônimo disse...

Walmir, vc esta na profissao errada: se ja tem algo escrito, publique, se nao os tem, continue, imediatamente, ja, pois vc eh muito bom !!! Ganhou um fa. Um forte abraco,
Duda Marques