Altino, há quanto tempo! Estranho este contato inesperado, no Dia dos Mortos? Estou desde o dia 24 num ritual de divulgação solitária, em memória de um amigo inesquecível. Nesta semana ocorreu o "julgamento", com 19 anos de atraso, dos assassinos de Vicente Cañas, que a mídia tratou apenas en passant em meio à profusão marqueteira da campanha eleitoral.
Escrevi um depoimento, que tenho distribuído a amigos e pessoas sensíveis à vida e morte na Amazônia. Nessa Amazônia bela e terrível, entremeada de Vanessas, Dorothys, Chicos e Vicentes. Diria que Cañas foi o "Chico Mendes do Indigenismo", naturalmente, guardadas as devidas proporções entre o poder de difusão de seringueiros e o silêncio subterrâneo de índios "isolados".
Num tempo em que os eclesiásticos "recém alforriados" pela Teologia da Libertação ainda tentavam processar internamente seus remorsos em relação à catequese, e a maior parte dos indigenistas/sertanistas leigos ainda só pensavam em "amansar" os "brabos", Cañas já abraçara com despojamento e leveza a doce e árdua atitude de viver com eles, como eles, sem artificialismos e sem imposições ideológicas.
Nos legou uma percepção, visionária porque óbvia, de que aos índios, basta ser índios, e que eles sabem sê-lo muito bem, se viverem em paz - difícil é esta paz. Te envio, então, "depoimento" e foto, de uma das raríssimas aparições urbanas de Vicentón, com seu porronca, que ele gostava de temperar com mamica-de-cadela, uma raiz cheirosíssima da Chapada dos Parecís. A foto foi tirada por Railda Herrera, em 1986.
Cá nas trincheiras orientais, muita malária e muito sojeiro chegante - mal dá tempo de acessar virtualidades.
Abraço e boas sortes pra ti, aí nas fronteiras ocidentais.
HASTA LA VISTA, VICENTÓN!
Rosa Cartagenes
O ano de 1987 foi marcado pessoalmente por fortes emoções. Em abril nascera meu primogênito, Kamiwirá. Em maio, fomos surpreendidos pela notícia da morte trágica do jesuíta espanhol, indigenista e amigo Vicente Canãs (foto), brutalmente assassinado próximo ao casebre que utilizávamos como “base de apoio” às margens do rio Juruena, no território dos Enawenê-Nawê, no Mato Grosso. Segundo os laudos posteriores, seu corpo fora encontrado apenas cerca de 40 dias após sua morte. A área dos Enawenê naquela época ainda era razoavelmente isolada, e Kiwxí, como o chamavam os índios, gostava de ficar meses internado na mata, vivendo com e como os índios, sem fazer questão alguma de contato externo regular através do único rádio disponível na área, que ficava justamente na “base”, há muitas horas de voadeira da aldeia.
Creio que fui das últimas pessoas a trabalhar em área com Kiwxi. Foi um privilégio raro, que desfrutei como ser humano e indigenista. Aconteceu em 1985 quando, num misto de sorte e obstinação, escolhera fazer meu primeiro “estágio” em campo, pela OPAN, justamente entre os Enawenê-Nawê, cuja situação de pouco contato interétnico me seduzia e fascinava. Garota urbana cheia de sociologias acadêmicas e ideologias anárquicas na cabeça, a vitalidade cultural dos Enawenê-Nawê e a figura carismática, solitária e solidária de Vicente imprimiriam em mim, em curtíssimo espaço de tempo, experiências e conceitos inelutáveis para toda a vida.
“Vicentón”, como me habituei a chamá-lo na descontração cotidiana de aldeia, gostava de cultivar sua fama externa de eremita, cujas raras aparições no mundo dos brancos impressionavam pela energia dinâmica que emanava de seu corpo esguio, quase esquálido, em constante atividade fluida e ornado com todos os aparatos indígenas que tinha direito: os cabelos longos atrás, com a franja em corte triangular lateral, a la Enawenê-Nawê, os muitos brincos e colares típicos deste povo, as amarrações de algodão tingidas de urucum a circundar pernas e braços. Na verdade, amava de fato a liberdade plena que a solidão da floresta lhe permitia, e incorporara com alegria e total afinidade a vida cultural e espiritual que os Enawenê-Nawê lhes ofereciam como companheiros de convívio e destino. Sua vivência anterior com o contato trágico dos Tapayúna, no rio Arinos, lhe imbuíra da convicção inabalável de que os índios precisavam ser acima de tudo eles mesmos, sem imposições, sem dependências, sem catequeses, prenhes de vida e originalidade como só eles sabem ser. Detestava qualquer ranço de paternalismo, o que era também válido para quem chegasse para trabalhar em sua área. Em dez anos de convívio contínuo, era na época o único ocidental fluente na língua do povo, e sua vida, espartana aos olhos exógenos, era completamente arrebatada pelo pulsar vívido dos Enawenê-Nawê, cujo dinamismo e trejeitos já incorporara ao seu próprio modo de ser.
Apesar da dureza e solidão florestal que abraçara, Kiwxí tinha um espírito aberto a todas as transformações do mundo, e uma alma atenta e sôfrega diante da diversidade da vida. Não tinha gosto pelos registros etnográficos ou pelo discurso antropológico pedante, mas era capaz de passar horas em acalorados “debates experimentais” comigo, nas raras vezes que íamos ao “barraco-base” pernoitar para buscar medicamentos ou fazer contato pelo rádio. Reflexões intermináveis e surpreendentes que incluíam Nietzsche, S.Tomás de Aqüino, Pierre Clastres, Zen-Budismo ou a melhor forma de preparar um pato-selvagem na frigideira. Fazia tudo com agilidade e paixão insofismável, como se a vida eterna fosse acabar amanhã – o que tragicamente materializou-se na sua execução no coração da floresta que tanto amou.
Saí do trabalho junto aos Enawenê em 1986, quando me casei e fui trabalhar com meu marido, o indigenista João Lobato, no território dos Cinta-Larga. Sei que Vicente ficou um tanto magoado com minha saída, mas com um daqueles seus gestos largos e teatrais, imensos para seu próprio corpo, colocou a mão em meu ombro e soltou em seu portunhol “- Que hacer, son cosas do corázon...” Vicentón era assim, gestos imensos, sentimentos desmedidos, em sua poesia tão ibérica de ser ponte entre muitos mundos.
Em 1987 corriam os estudos delimitatórios oficiais da Terra Indígena Enawenê-Nawê, e Vicente comentara, aos amigos mais próximos, sua percepção intuitiva de estar sendo seguido, acossado. Sua descontração dava lugar a uma tensão estranha, e nos preocupávamos que continuasse como “equipe-do-eu-sozinho” numa área ainda muito isolada. Na última vez que o vimos, João insistira com ele para que andasse armado, evitasse andar só quando estivesse na cidade. Não beligerante convicto, Vicente jamais admitira a possibilidade de utilizar uma arma como instrumento de defesa pessoal, embora fosse bom atirador com sua velha espingarda de mato, que só usava mesmo para ocasionalmente degustar alguma caça. Hoje, acossados por pressões políticas e territoriais insuportáveis e afogados pelo poderio da soja, os Enawenê-Nawê devem sentir falta, e muita, do companheiro e parceiro que lhes sabia palavras e desejos. A presença e parceria de Kiwxí, que acompanhou a trajetória e os primeiros anos de convívio interétnico dos Enawenê, foi imprescindível para a sobrevivência e integridade física e cultural deste povo durante os anos de sensível período pós-contato.
Vinte anos depois, talvez maior que a dor e o choque diante do crime brutal e perda estúpida de um amigo especialmente querido é a amargura que gerou em nós o longo trajeto da impunidade que mergulhou o caso insolúvel do jesuíta assassinado nos ermos florestais em densas e isondáveis brumas policiais e jurídicas. Durante anos, Cañas se tornou apenas um ícone dos mistérios insolúveis da polícia mato-grossense, e apenas em 2001 o “caso” foi transferido para a Justiça Federal, diante do argumento irrefutável de que Vicente integrava oficialmente o GT relacionado ao reconhecimento do território indígena. Tanto tempo se passou, que dois dos presumidos mandantes do crime, os fazendeiros Pedro Chiquetti e Camilo Obici, jazem em paz. O terceiro, Antonio Junqueira (de triste e meritório sobrenome, associado à execução do “Massacre do Paralelo 11” ) tem qualquer pena prescrita por sua idade avançada. Dura lex, sed lex? Restam, ao julgamento, marcado para 24/10/2006, o ex-delegado da Polícia de Juína, Ronaldo Antonio Osmar, acusado de intermediar a “encomenda”- tendo, incrivelmente, sido o primeiro encarregado policial do processo investigativo, e os pistoleiros José Vicente e Martinez Abadio da Silva.*
Ainda assim, Kiwxi, alma índia e espírito libertário, vive mais que estrela, reluz constelação. Lembro sempre dele nas noites translúcidas e irretocáveis da floresta, aqui próximo à linha do equador, quando na noite silente paro à contemplação celeste, como ele, que gostava de atear a rede sob o sereno e filosofar astrofísicas. Lembro então de abrir os ouvidos aos muitos sons da floresta noturna, ouço até as estrelas, entre elas uma constelaçãozinha de estrelas avermelhadas, muito jovens, lusco-fusco de pirilampo irrequieto voejando na via-láctea. Acho que é Vicentón, besuntado de urucum, os muitos brincos indígenas de madrepérola tilintando, gesticulando muito, luz sonorizada. Pois como diz o poeta (Guimarães Rosa), “nossos mortos não morrem/ficam encantados...”. Pois então, hasta la vista, Vicentón!
◙ Rosa Cartagenes é indigenista no Pará. Martinez Abadio da Silva teve seu crime prescrito, também por ter mais de 70 anos de idade, e o ex-delegado Ronaldo Osmar foi absolvido no domingo passado por “falta de provas”. Difícil comprovar fatos 19 anos depois, principalmente quando se tenta desqualificar as duas testemunhas de acusação, que são índios rikbaktsa. O julgamento do pistoleiro José Vicente da Silva foi desmembrado e transferido para a próxima segunda-feira. Este é o último ano para tentar qualquer imputabilidade, pois o crime prescreve no ano que vem.
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