segunda-feira, 9 de outubro de 2006

PARA CHE GUEVARA

Querido irmão Ernesto,

Tomamos-te, sabes, num instantâneo de improvisada caserna, pouco antes de teu Armagedon. Curtias teu recesso, e lias - ora, pasme-te - Goethe! Que tempo nobre emprestavas à filosofia em bem urdida teia ociosa de literatura. Topaste com a Ottilie de Afinidades Eletivas? Ali, residia a melhor pergunta: quando é que se morre de verdade? Ah, não é quando silencia a respiração, mas quando todos te enterram no esquecimento. Esta, a segunda morte, é a definitiva, definitivíssima.

Hoje, amigo, 9 do 10 de 2.006, é data de prova gravíssima. Há 39 anos, partiste, dizem, deste mundo de cá. E tinhas 39, desde 1928, de modosque, portanto, agora, competem tua vida e tua morte. Hoje, é dia, de apurar licitamente quem venceu.

Em La Higuera, na pacha mama Bolívia, se tem lembras, aplicaram-te a pena máxima. Triste que a tenhas recebido de tão amados bolivianos. Então, nos atestam os jornalistas que te resumiste nesta evidência forense:

Ai, ai, ai, amigo, será que acredito? Que todo teu asmático altruísmo se resumia nesta poeira marrom de óssea-estrela morta? Como podes discursar, tão ativo de idéias, neste cadáver despedaçado? Ah, Goethe, então, tu que me expliques dessa tua "teoria das cores": que centelha de consciência cromática resta nessa pulverizada relíquia mortuária?

Tu nos ofereceste, amigo Che, fatia desta ternura que deveríamos jamais abandonar. Hijo de puta, quanta responsabilidade puseste em nossas espaldas modestas. Quanto desejo de barbarizar, se nos ensinaste apenas "hasta la victoria sempre". Então, aqui do presente, recorremos a teus jogos domiciliares para nos armarmos de alguma impossível razão.


Quanta ingenuidade infantil e zombeteira, coisa de poeta... Ah, Che, que covardia heróica nos legaste... Se diante de teus olhos, n'algum lugar indígenas, obtiveste o privilégio de permanecer criança sempre... Aqui, neste lado duro da vida, te invejamos, porque passaste, como queria o poeta Quintana, passarinho... Tão duro nas tuas armas, menos prolíficas que tuas canetas falhantes de chuva, criva-nos de mil poemas de amor, cunhados nas mais cruéis trincheiras...

Ora, amigo, que bom nos seria montar a tua motocicleta-avó, tão mais fêmea e animal que nossas tais, filhas das barbáries do trâfego horista pós-moderno... Ah, deixa estar, mas que peça nos pregaste, moço argentino da boina... Teu tempo dos 39 foi, ousamos na inveja notar, comeste mais saboroso que o nosso... Agora, goethianamente, em teu complemento de vida, apostamos que gargalhas de nossas fraquezas.

Amigo, Ernesto, prosseguimos em indagações: como acolheste assim bem a dádiva de viver sem dever? Aqui, deste lado, ao cabo dos 39, admiramos tua família para sempre. As crianças sorridentes para sempre, a companheira fiel hasta la eternidade, o teu sorriso quase escárnio de nós... De 1938 a 1967... 39 mais leves que os nossos. Entenda: a CIA, as natas burguesas e a Coca-Cola desenvolveram-se desde tua primeira partida. Aqui, nestes segundos 39, a brigada sofre mais, tecnologicamente controlada, varrida e cybercadastrada.

Te acompanhamos aqui, como se pudéssemos interpelar o destino, como se fôssemos capazes de atar as mãos do teu histórico algoz. Quanta falta de ar, Che, que agora é nossa. Quanto oxigênio nos falta, irmão! Que mierda foste produzir neste 39 x 39? De 28 a 06, que dupla de vidas foste autenticar nesta prova absurda, neste gládio de anjo?

Ai, ai, ai, como se fosse hondo o nosso canto, receamos que porra foste fazer sobre a mesa da nomenclatura socialista, como se empunhaste a bandeira dos cafajestes do tango, felizes de botar bundas sobre as fazendas nobres dos restaurantes de Buenos Aires... Agora, quanta responsabilidade nos legaste, hijo de puta!

A nós, se resta opção, neste primeiro dia do segundo 39, neste doloroso puto 09 de Outubro, é carregar uma semente desta tua saca de grãos, desta tua quase beatíssima voluntária oferta, desta tua lição de exigência, tão quase impossível, de rir numa ternura que arrebenta na carne dos vivos a limitação da fé..

WFJr.

Walter Falceta Jr. é jornalista paulista

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