terça-feira, 31 de outubro de 2006

PAPO ANTROPOFÁGICO

DESENCANTO HABITUAL
A
lexandre Goulart de Andrade

"É forçoso, em primeiro lugar, repor a verdade: o grande "comedor de gente" é o Txai Terri Aquino. Prova disso é quando revela sua condição de "adotado por um amor passageiro e intenso, que, no meu caso, sempre deu frutos bem concretos".

Txai, vou anotar sua proposta sobre a coletânea da coluna "Papo de Índio", que achei muito bacana e merecedora de registro à altura deste "front" contra-hegemônico das forças indígenas e seringueiras.

E quero reforçar aquele pedido de realizarmos um projetinho que coloque os txais da floresta, grandes pajés, caciques e cantadores - seu Agostinho "Muru" Manduca Mateus, seu Milton, seu Antônio de Paula, entre tantos outros - como protagonistas do registro histórico de seus enciclopédicos conhecimentos.

Assim, você alia seu "navegar de batelão no rumo dos altos rios de nossas fronteiras" com a importante missão de dar mais voz aos moradores das cabeceiras deste Acre profundo, que você tão bem conhece.


Outro dia vi o Txai Terri atravessando a avenida Ceará com sua tiara huni kuin na cabeça, sua capanga de kenês, calça jeans e jeito rebelde de ser. Parecia levitar sobre as faixas de pedestres, condensando em uma pessoa só os quatro Beatles naquela célebre capa (Abbey Road). E, levitando, levava junto idéias e sentimentos que estão muito arraigados à esta terra firme.

O mundo pareceu fazer sentido enquanto o Txai caminhava por entre "vultos coloridos, pintados de urucum e jenipapo", num trânsito entre yuxin e yuxibu que só grandes txais podem fazer.

Depois o sinal de trânsito abriu, os carros voltaram a andar em polvorosa, e o mundo pareceu retornar novamente ao seu desencanto habitual.
Salve os txais da floresta! Salve Txai Terri".


SOTAQUE ORIENTAL

Txai Terri Vale de Aquino

"Faz tempo que não escrevo projetos, coisa que fiz muito de meados da década de 70 ao início dos anos 90. Era o tempo dos projetos de cooperativas de borracha, que ajudavam os índios a se mobilizar politicamente pelo reconhecimento oficial de suas terras. Mais do que demarcá-las fisicamente, queriam demarcá-las socialmente, ou seja, retirar todos os patrões e seringueiros cariús de suas terras.

Desde 1994, estou mais envolvido nos processos de regularização de novas terras indígenas no Acre, seja elaborando relatórios de identificação e delimitação de várias dessas terras indígenas, seja ajudando em campo outros colegas antropólogos, que coordenam grupos técnicos da Funai com essa mesma finalidade, mas não conheciam os índios dessa terra.

Desde 2004, quando retornei novamente ao Acre, depois de sete anos trabalhando na Funai e no Ministério do Meio Ambiente (escrevendo o relatório de criação da Resex Riozinho da Liberdade), venho participando também de muitas "oficinas de etnomapeamento e etnozoneamento" em terras indígenas no estado, situadas tanto na fronteira internacional com o Peru, quanto daquelas situadas nas proximidades da fronteira com o estado do Amazonas, impactadas pelas pavimentações das BRs 364 e 317.

Apesar de estar à margem desse novo "mercado de projetos" com índios e extrativistas, acho que a maioria deles não recompensa os velhos indígenas e ex-seringueiros envolvidos no processo de resgatar seus "tempo da memória" na floresta. "Esquecem" de recompensá-los financeiramente pelo importante trabalho que realizam enquanto pesquisadores da floresta para os "donos" dos projetos.

Eu não teria coragem, por exemplo, de convidar o meu velho amigo Raimundo Luis Yawanawá, para falar horas e horas sobre a sabedoria dele e de seu povo sobre a biodiversidade de suas florestas e de aspectos importantes de sua cultura e organização social, sem lhe oferecer ao menos uma bolsa de pesquisador.

Os velhos índios não querem ser mais apenas informantes de pesquisadores e antropólogos brancos. Querem ser parceiros intelectuais e querem receber pelas pesquisas que eles também participam juntos aos seus povos e suas terras.

Então, Alexandre Goulart, pergunte mais sobre isso ao líder indígena Joaquim Tashkã, que ele, como um bom poliglota que é, vai lhe ensinar melhor do que eu como é essa história toda.

Você pode conversar com ele em língua yawanawá, ou, se preferir, em português, ou inglês, que ele também fala muito bem, com sotaque oriental de Chinatown da Califórnia".


Alexandre Goulart de Andrade e Terri Vale de Aquino são antropólogos e trabalham na Secretaria de Meio Ambiente e Secretaria dos Povos Indígenas do Governo da Floresta. A palavra txai, de origem kaxinawá, significa amigo, cunhado, parente.

2 comentários:

Anônimo disse...

Terry nos propõe uma perspectiva a ser considerada no tratamento da questão da biopirataria. O levatamento, localização, mapeamento de componentes ativos realizados pelos emissários das empresas farmacêuticas assumem como ponto de partida o o que Terri chama de "resgate do 'tempo de memória'" das comunidades indígenas.

O que Terri propõe adicionalmente é que a comunidade nacional, também, ao buscar fundamentos econômicos para sua ação florestal, age como bucaneiros apropriando-se do saber indígena sem nada atribuir às comunidades a cuja história é atribuído o processo de formação desse saber e memória. As vezes, mais grave ainda, é que a partir dessa recuperação deflagram-se ações que concorrem para destruir os laços comunitários indígenas transformando populações em párias.

São ações que transformam os vultos pintados e cobertos por belos adereços em imagens cobertas por andrajos e manchados pela sujeira da fuligem lançadas pelos carros nas ruas das nossas cidades.

É bom refletir com Terri sobre a base originária da nossa população antes de pensar em termos de conquistas, bucaneiros que somos.

Anônimo disse...

Txai Terri e Mário fazem observações oportuníssimas e eu concordo com ambos em gênero, número e grau. Porém, interessado que sou nesta matéria não posso deixar de contribuir com minha visão sobre a questão, até por dever de socializar experiências bem sucedidas nas quais os próprios indígenas (e seringueiros) são formuladores de projetos cujo foco são seus planos de vida (Paulo Freire nos ensinava que "projetar" é organizar a ação dos homens com vistas à ação futura...).

Segue um pequeno extrato de texto contido no Projeto Pedagógico de "Curso de Formação de Gestores de Projetos Indígenas" que coordenei em Manaus para 30 indígenas da Amazônia (e que será replicado aqui no Acre, a partir de Dezembro):

"Uma das peculiaridades das sociedades humanas é a sua capacidade de incorporar e ressignificar os elementos culturais necessários para a implementação do seu Plano de Vida (aspirações coletivas de um determinado povo ou comunidade).
No caso das sociedades indígenas, os recursos externos podem ser apropriados como ferramentas importantes para o seu desenvolvimento ou, inversamente, podem interferir de maneira negativa nas suas relações sociais, econômicas e culturais. O que irá definir se um recurso é adequado ou não aos interesses comunitários será a possibilidade ou a impossibilidade da comunidade decidir sobre a natureza e os objetivos das ações propostas, sobre o ingresso, a administração e a aplicação dos recursos, sobre as estratégias de participação comunitária e sobre o processo de formação dos atores nele envolvidos.

Assim circunscritos, os projetos externos adequados serão aqueles que trouxerem maior controle comunitário sobre si e sobre outros elementos culturais apropriados nas relações intersocietárias.

Este exercício do controle coletivo qualifica as sociedades indígenas e pode ser um novo instrumento de luta por maior autonomia, liberdade e desenvolvimento.

Entretanto, a história recente mostra que o poder público pouco tem feito para ampliar a autonomia das comunidades indígenas e que, ao contrário, vetou-lhes sistematicamente a possibilidade de exercer o controle sobre os seus projetos.

Um dos marcos dessa relação restritiva remonta à primeira metade do século passado, ao período de vigência do Serviço de Proteção aos Índios – SPI e ao início da atuação da FUNAI. Até a década de 1960 quase inexistiam projetos voltados para as comunidades indígenas e, quando propostos, não contavam com a sua participação. Os projetos eram apenas localizados sobre as terras indígenas e o seu objetivo explicito era o de integrar os povos indígenas à sociedade nacional.

Nos anos 70 e 80, no bojo da expansão desenvolvimentista do Estado Brasileiro e ainda sob a égide da ditadura militar, deu-se início a um conjunto de iniciativas oficiais voltadas para a integração nacional. No interior desses Programas, as ações mitigatórias para as sociedades indígenas tiveram vários objetivos: justificar a captação de empréstimos externos; reduzir os conflitos com as frentes de ocupação; amenizar os impactos decorrentes da redução dos territórios indígenas. Neste período houve uma inclusão compulsória dos indígenas em atividades periféricas dos projetos. Os dois objetivos principais dos projetos foram a captação de recursos para financiar o órgão indigenista oficial e a mediação dos conflitos entre os índios e as frentes de ocupação.

Nas décadas de 1980 e 90, no contexto geral da democratização do país e das lutas das minorias por seus direitos, propôs-se a inclusão solidária das sociedades indígenas no âmbito das políticas públicas voltadas para as chamadas “populações desassistidas”.

Tais iniciativas de caráter assistencial contemplavam algumas formas de participação indígena e se propunham a “resgatar os valores étnicos, culturais e de cidadania”. O modelo de financiamento e de gestão dos chamados projetos solidários representou um grande avanço em relação aos períodos anteriores, porém manteve a perspectiva tradicional de ser concebido, elaborado e avaliado segundo os critérios dos atores externos. Eram projetos que contavam apenas com a participação indígena.
Nos tempos atuais começa a frutificar no âmbito do movimento indígena e das instituições apoiadoras uma nova concepção de projetos. Eles passam a ser vistos como partes integrantes do Plano de Vida de um povo e/ou de uma comunidade. A participação indígena é assegurada em todas as suas etapas, desde a definição das prioridades até a sua localização, elaboração, busca de financiadores, planejamento e administração dos recursos, acompanhamento das ações, avaliação, registros, divulgação...

Nessa nova perspectiva, os projetos se ancoram no protagonismo indígena e na relação dialógica entre todos os atores sociais e as todas as esferas do poder público. Tratam-se, portanto, de projetos indígenas.

A incorporação da participação e da responsabilização compartilhada tomou força na medida em que se percebeu que o protagonismo indígena no âmbito dos projetos só será possível se forem assegurados os espaços estratégicos para a sua consolidação, e dentre eles, o domínio dos saberes relativos a sua Gestão (entendida numa perspectiva bem ampla)".

PS. Esta proposta de "bolsa-pesquisador" que Terri propôe e com a qual estou de pleno acordo, me lembra caso japonês no qual cerca de 100 idosos, experts em assuntos distintos (que vão de tatuagens a hai-cais), recebem uma bolsa do governo. Neste caso específico, nós (cidadãos, formuladores de políticas, ongueiros, etc) precisamos nos conscientizar de que a "água está escorrendo pelas nossas mãos". Por isso, em minha fala ressaltei o termo "protagonista" (os Povos Indígenas). Abraços fraternos.

Alexandre Goulart de Andrade