terça-feira, 5 de setembro de 2006

GUERRA SEM TRINCHEIRAS

Mary Alegretti

O assassinato brutal de uma jovem pesquisadora na Amazônia aguça sentimentos de revolta e impotência. Ela não foi assassinada por conflitos de terra ou desavenças políticas. Ela foi morta mais por ser mulher, estar fora do contexto convencional, e ter encontrado em seu caminho um ser irracional e violento. De pouco adianta questionar autoridades; o indivíduo - em liberdade condicional e que certamente não deveria ter sido solto - já está detido e pouca diferença isso fará no final da história. Ao menos é o que parece.

Vanessa era jovem, 36 anos, portuguesa, já havia realizado pesquisas no Nordeste, na Índia, trabalhado no Peru, na Costa Rica e estava agora pesquisando no Acre. Decidira trabalhar em uma área ainda não estudada, o Projeto de Assentamento Riozinho. Como afirmou Christiane Ehringhaus no blog Rede Reservas Extrativistas, ela tinha uma vida muito rica de experiências e aventuras e quase mudara de rumo antes de decidir retomar as pesquisas e ir para o Acre, como muitos outros pesquisadores vêm fazendo nos últimos anos.

Esse é o perfil de uma pessoa incomum, corajosa e de uma pesquisadora determinada. É o perfil da maioria dos membros da Rede de Pesquisadores em Reservas Extrativistas. Muitos de nós já passaram por situações de risco, encruzilhadas perigosas, oposição da família, dos filhos, dos amigos. No entanto insistimos em seguir o rumo desse caminho.

Que motivos são esses que levam pesquisadores a associar à curiosidade intelectual, a coragem, e deixar trilhas fáceis e já dominadas para ir para o desconhecido e o imponderável? Quantas vezes nos perguntamos - como traduzir o que nos move? É esse sentimento de descoberta, de estar em um lugar onde ninguém antes pesquisou, entrevistar pessoas que nunca conversaram sobre suas vidas e que se percebem falando coisas que nem sabiam que existiam dentro delas.

Somos como os esportistas que buscam a montanha mais alta e os mares mais revoltos; só que o que nos move é visitar a aldeia mais isolada, viajar por rios não navegados, encontrar pessoas não entrevistadas, conhecer culturas não descritas, escrever diários não registrados nas ciências sociais e naturais...

No fundo, porém, o que mais nos motiva - e acho que Vanessa também partilhava essa marca - é a identidade que criamos com as pessoas que pesquisamos e o envolvimento com o futuro que as espera.

Esse sentimento de compromisso com a mudança da realidade investigada é difícil de ser entendido para quem não o conhece. Parece que a Amazônia é um lugar que costuma deixar esse tipo de marca, de forma indelével, em nossas peles. E é uma marca intransferível que quando se instala em nós, não nos dá sossego, não nos deixa em paz, a não ser quando, cansados de lutar contra, deixamos que a coerência tome conta e não procuramos mais parecer igual aos outros, quando de fato não somos.

É esse laço invisível com a realidade que a gente estuda e desvenda, com as pessoas que nos ensinam sobre ela, e com o futuro que imaginamos poder transformar, que nos mobiliza.

A violência política sempre esteve no horizonte de referência de pesquisadores que trabalham em áreas de conflito e em seringais. Mesmo territórios já protegidos como reservas extrativistas e terras indígenas, estão constantemente ameaçados por interesses contrários. Também já presenciamos a violência entre iguais, causada por desentendimentos, ciúmes e brigas e aquela que afeta grupos vulneráveis, como as mulheres.

Mas a violência que acreditamos ser parte do universo urbano, aquela que os sociólogos relacionam com a desagregação familiar das grandes cidades, com o uso de drogas, com a rede de tráfico, essa ainda não cabia no universo da floresta. Para esse tipo de violência as pacíficas comunidades tradicionais não têm a menor proteção, como não teve Vanessa e não terá nenhum dos pesquisadores da nossa Rede Resex.

Vivemos uma saturação de violência em nosso país, uma gratuidade em relação à vida, que é verdadeiramente assombrante. Embora não declarada, é uma situação de guerra. Só que jornalistas, pesquisadores, quando vão cobrir ou estudar uma região em guerra, contam com a proteção da ONU ou do governo, ou de ONGs internacionais. Eles não vão de GPS, computador, caneta, caderno e máquina fotográfica.

Não ser uma pessoa convencional, não pesquisar temas banais, não estar nos lugares seguros que se espera que esteja, arriscar uma aventura pessoal e científica... ao invés de assegurar um espaço de reconhecimento do país e dos pares, acaba se transformando em um risco exclusivamente pessoal contra o qual não há nenhuma instituição a quem se possa recorrer.

Precisamos de um espaço institucional de proteção para que a vida possa continuar entre os que não estão em guerra. É uma medida urgente a ser cobrada do Estado brasileiro antes que a mata amazônica e suas pacíficas comunidades, sejam envolvidas por essa guerra sem trinheiras.

O artigo da antropóloga Mary Alegretti foi escrito com exclusividade para a organização Amigos da Terra - Amazônia Brasileira.

Um comentário:

Anônimo disse...

Sou pesquisadora e viajei várias vezes ao Acre, sozinha, me movimentando por vários terrenos para realizar minha pesquisa. Após este acontecimento lamentável acredito não devermos mais trabalhar sós em campo. Principalmente nós mulheres. É uma pena. O Acre é belo, sua gente maravilhosa, mas há sempre estes perigos que podem acontecer em todo lugar do mundo a qualquer hora. Meus pêsames à família de Vanessa. Que ela descanse em paz!