Ele mesmo conta que até há pouco tempo, onde chegava nos bares, no mercado, na própria universidade, os freqüentadores iam logo dizendo "lá vem o chato, lá vem o alarmista, lá vem o profeta do rio" e o evitavam. Pelos cabelos e barba revoltos, o geógrafo Claudemir Mesquita, 55 anos, um acreano franzino, puxando de uma perna mais curta, é o próprio "profeta". Contudo, ele não se importa com o que dizem dele. Ao contrário, inflama-se e se indigna, quando passa a alertar, a denunciar os crimes ambientais que vêm sendo cometidos contra o Rio Acre e seus afluentes. Especialista em Planejamento e Uso de Bacias Hidrográficas pela Fundação Getúlio Vargas, o geógrafo aponta nesta entrevista as principais causas que estão envenenando e matando os rios da região, numa morte lenta e inexorável, se medidas urgentes não forem tomadas:
A GAZETA: Há vários anos o senhor vem anunciando a morte do Rio Acre. O senhor continua mantendo essa previsão ou mudou?
Mesquita: Mantenho e para mim está muito claro. Na medida em que as cidades crescem e aumenta a demanda pelos recursos do rio, não só por água, mas por outros recursos como a areia para as construções, o rio tem cada vez menos chances de sobreviver. As empresas ganham muito dinheiro extraindo a areia. A água, claro, é o principal recurso e vem sendo cada vez mais comercializada.
A GAZETA: Quais seriam os principais sintomas ou causas dessa morte lenta do rio?
Mesquita: Há vários sintomas ou causas. O principal deles ou a principal causa é o desmatamento. Desmatou, a água não infiltra mais no solo. Se infiltra é muito pouco e esse pouco não abastece mais o lençol freático como antigamente.
A GAZETA: Por que não abastece?
Mesquita: Porque numa estiagem mais prolongada, o rio não pode garantir com essa pouca água infiltrada a sua perenidade por um tempo maior. Este é um aspecto importante. O outro ponto é que quando se desmata, desmata-se também a vertente e esta vertente - eu vejo isso todos os dias no campo - está sendo pisoteada, socada e a água não brota mais desse veio. Ou seja, a vertente que nasce rente ao solo, escoa, seca mais facilmente. Ora, era essa infinidade de vertentes ou mesmo filetes d'água que abasteciam os igarapés e os igarapés que abasteciam os rios, que mantinham a perenidade dos rios por mais tempo. Se essa cadeia é quebrada, conseqüentemente, aumenta o déficit de água dos rios. Por isso é que é importante entender a natureza.
A GAZETA: No caso aqui do Rio Acre, quais seriam os principais igarapés que já estariam faltando com essa contribuição? O Riozinho do Rôla, o Igarapé São Francisco...
Mesquita: Não me restrinjo apenas a esses igarapés. Vou mais longe. Eu parto do Igarapé Grande, em Assis Brasil (na fronteira do Acre com o Peru), que já está muito antropisado...
A GAZETA: O que é antropisado?
Mesquita: Antropisado significa que já está muito desmatado, pisoteado em suas margens, agredido pela ação do homem. Por sorte, o Igarapé Grande possui ainda uma área preservada, na reserva Chico Mendes, que ainda mantém sua perenidade. Aí, eu venho para o Rio Xapuri. O Xapuri tem suas nascentes na mesma reserva e pode-se dizer que é único rio aqui do Vale Acre que ainda é perene. Já o Riozinho do Rôla não é mais perene e não foi pelas longas estiagens. Foi pela excessiva falta de umidade relativa do ar. Agora mesmo, só temos dois meses de falta de chuva e ele secou. Vindo, então, para Rio Branco, temos o Igarapé São Francisco, que seria outro contribuinte do Rio Acre. Ora, este todo mundo conhece, já não tem mais floresta. Em suas margens existem apenas alguns pequenos bosques, cercado por todos os lados por campos de pastagens. Além disso, para acabar de matar o São Francisco, o Incra assentou em suas cabeceiras o PAD Carão (Projeto de Assentamento Dirigido). O PAD Carão está em cima das nascentes do igarapé. Além dos colonos, os fazendeiros ocuparam toda a área à sua volta, na AC-90, na Transacreana, desmatando tudo, sem deixar nenhuma reserva. Nesses rios ou igarapés não existe mais água suficiente nem para os produtores manterem seu cultivo. O que se vê hoje são os resíduos ou dejetos jogados diretamente em seus leitos. Conseqüentemente, para o futuro, a conti-nuar assim, com esse desmatamento desbragado e a poluição, nossos filhos não verão um peixe em torno de 100 km². Isso me deixa triste, porque poderíamos crescer, desenvolver economicamente, mas também ambientalmente.
A GAZETA: Neste período do ano, de "verão amazônico", de estiagem, já se pode ver que em alguns locais o Rio Acre está quase 'apartando'...
Mesquita: Ah, pode-se ver sim. Do Riozinho do Rôla até Rio Branco, na semana passada, um barco com cinco pessoas não conseguia avançar. É triste dizer isso, e quando se alerta, as pessoas ainda acham que se está exagerando...
A GAZETA: ...alarmando...
Mesquita: Pois é, alarmando. Dizem que não se deveria dizer ou mostrar essa realidade em nome do 'progresso'. Mas é a realidade e uma realidade incontestável. Qualquer ribeirinho, que depende do rio para sobreviver, vai dizer a mesma coisa. Contudo, é preciso que nos preocupemos hoje não só por nós, mas por nossos filhos e nossos netos.
A GAZETA: E do lado do Peru, onde estão as principais nascentes do Rio Acre, como é a situação?
Mesquita: Pois é, o Rio Acre nasce de dois rios no lado peruano: do Rio Eva e Rio das Pedras. Há bem pouco tempo, a área no entorno desses rios ainda possuía uma cobertura vegetal bastante vasta. Atualmente, através dos satélites, já se detectam desmatamentos de 10 mil km² em torno desses dois rios peruanos. Como não existe uma lei ambiental rígida no Peru, o ritmo do desmatamento continua cada vez mais acelerado. Na medida, portanto, em que a pressão econômica aumentar também naquele país vizinho, vamos ter muita dificuldade para fazer um trabalho ambiental conjunto entre os dois países.
A GAZETA: O senhor disse que os nossos filhos e netos não verão mais os peixes. Tudo bem. Porém, a questão é que as cidades localizadas às margens desses rios e igarapés estão crescendo ou 'inchando' e, cada vez mais, precisam de água. Aqui mesmo em Rio Branco, está-se comprando mais bombas e cavando o rio para aumentar, facilitar a captação. Como conciliar isso?
Mesquita: Este é outro ponto nevrálgico da questão. Na medida em que se faz, por exemplo, um investimento de R$ 30 milhões para aumentar a captação e não se faz o mesmo investimento para preservar e revitalizar o rio, está-se dando um tiro no escuro.
A GAZETA: Por que?
Mesquita: Porque corre-se o risco de daqui a dez anos não se ter mais água, mais rio. Portanto, será que esse investimento valeu a pena? O que defendo é que se faça um investimento básico de preservação e revitalização e depois de captação. Só que estamos fazendo o inverso. Isso tem que ser dito, sem melindres. O gestor público, os prefeitos, os governadores, o colono, os fazendeiros, os pescadores, todos precisamos nos conscientizar sobre essa realidade e a necessidade urgente de tomar providências para não deixar os rios e igarapés morrerem. Precisamos organizar caravanas até Assis Brasil, ir até ao Peru, levando cartilhas ou outros subsídios, alertando sobre esses riscos e a necessidade de preservação. Precisamos atravessar a fronteira e dizer aos peruanos e bolivianos que os impactos da seca de 2005 foram terríveis; que nós precisamos que eles também preservem as margens dos rios e igarapés que nascem em seus territórios, porque precisamos de sua água.
A GAZETA: A propósito, como analisar a grande seca de 2005 que atingiu não só os rios do Acre, mas de toda a Amazônia? Teria sido um fenômenos atípico ou já seria conseqüência do desmatamento cada vez maior da floresta amazônica?
Mesquita: Infelizmente, precisou que viesse uma grande seca como a do ano passado para chamar a atenção e a sociedade começar a preocupar-se com a gravidade do problema. Quando faltou água nas torneiras, os rios, os igarapés e os açudes secaram, só então as pessoas começaram a nos procurar pedindo informações e sugestões.
A GAZETA: Mas como explicar aquela seca?
Mesquita: Vamos lá: Este ano ou neste "verão amazônico" está até chovendo mais do que no ano passado. Porém, como não é muito, é possível que os rios da região continuem secos até dezembro. Se isso ocorrer, vamos ter um problema para explicar ou medir os períodos de maior ou menor estiagem, de mais ou menos chuvas. Num ano, como este, tem-se dois meses de estiagem; no outro, como no ano passado, tivemos cinco meses de estiagem. Ou seja, fica difícil estabelecer parâmetros ou fazer uma medição de um período do ano em que o clima está se modificando muito rapidamente. O fato incontestável é que a situação está cada vez pior porque o desmatamento aumenta, com um agravante em relação ao Rio Acre: praticamente todos os investimentos que estão sendo feitos no Estado estão sendo localizados na microrregião do Vale do Acre. E isso preocupa, porque o rio será mais castigado ainda.
A GAZETA: Como conciliar, então, essa pressão econômica com a preservação? O que se observa, de modo geral, é que a sociedade, os governantes querem esses investimentos. Alguns segmentos políticos, nesta campanha eleitoral, propõem abertamente que é preciso derrubar a floresta para abrir mais fazendas, para plantar soja, como se fez em Rondônia, no Mato Grosso e está-se fazendo no Pará.
Mesquita: A pressão econômica é inevitável. Não tem como fugir dela. O desenvolvimento é necessário para melhorar a qualidade de vida. Contudo, é necessário e imprescindível que aconteça de forma harmônica, sustentável. Ou seja, esse desenvolvimento tem que ser monitorado pelos órgãos ambientais. Se for necessário desmatar uma área, que se verifique antes o impacto ambiental, se essa área não possui nascentes. Enfim, que o governo tenha governabilidade e controle sobre o que se vai fazer.
A GAZETA: Com relação ainda à seca do ano passado, observou-se que não foram só os rios do Acre que secaram, mas de modo geral em toda a Amazônia. Isso foi um fenômeno atípico, localizado ou já é um fenômeno global?
Mesquita: É global, é global. No caso do Acre, sofremos mais, porque estamos localizados nas nascentes dos grandes rios da região amazônica. Claro, outros estados também sofreram. Mas, nós sofremos mais, porque todos os grandes rios nascem nesta parte mais ocidental da Amazônia. Este, aliás, é mais um motivo para cuidarmos do nosso espaço, para garantir a perenidade dos rios de outros estados amazônicos.
A GAZETA: Outra questão: como analisar os açudes que os produtores rurais estão cada vez mais construindo para se livrarem da seca?
Mesquita: Esses açudes são uma praga (risos).
A GAZETA: Por que?
Mesquita: Pelos motivos já expostos. Porque as águas das nascentes, que deveriam abastecer os igarapés e os igarapés, os rios, são represadas num buraco. Ou seja, um fazendeiro ou colono que faz isso estão se apropriando de um bem coletivo para garantir só a sua produção, o seu lucro, a sua riqueza. Isso se o açude também não secar.
A GAZETA: Outro fenômeno: como explicar que em 2005 ocorreu aquela seca braba, severina e, logo em seguida, este ano, no "inverno amazônico", aconteceu uma grande enchente? Isso é também algum fator de desequilíbrio ambiental?
Mesquita: Ah, sim, é conseqüência de um desequilíbrio. Quando se desmata, não se tem mais o sistema de contenção ou absorção das águas das chuvas. A água cai, não penetra no solo, porque não há mais floresta, e escorre toda para os rios provocando as inundações.
A GAZETA: Mesmo assim, dá a impressão enganosa que está tudo bem. Ou seja, veio a seca, mas em seguida a enchente e a Amazônia continuaria sendo a mesma, com a maior bacia hidrográfica do mundo.
Mesquita: Com efeito, é enganosa, porque na cheia deste ano não choveu essas coisas todas. Ao que consta, este ano choveu em torno de 380 mm, enquanto em outras enchentes de anos passados era preciso chover em torno de 450 a 480mm. Eis o desequilíbrio: antes chovia mais e havia mais retenção; hoje, chove menos, com o desmatamento o solo retém menos, a água escoa mais depressa, elevando o nível dos rios e lagos.
A GAZETA: Além do nível dos rios, o que o senhor observou mais que sumiu nesses últimos anos?
Mesquita: Antes, podia-se ver botos, jarus e outros grandes peixes no Rio Acre. Com a carga poluidora dos esgotos e dos agroquímicos ou agrotóxicos, eles sumiram.
A GAZETA: E tem isso também de agrotóxicos?
Mesquita: De 1970 para cá, 80% da carga de agrotóxicos que chegou ao Acre foi para atender a formação de fazendas no Vale do Acre. Hoje, o Estado possui em torno de 2 milhões de cabeças de gado. Por aí, pode-se calcular o quanto de agrotóxicos foi e ainda está sendo absorvido pelo solo, do solo para as nascentes e igarapés e dos igarapés para o rio. É uma quota altísssima.
A GAZETA: Consta inclusive que se usou muito o herbicida Tordon, um derivado do Agente Laranja que os norte-americanos usaram na Guerra do Vietnã.
Mesquita: Sim, o Tordon. Há registros, em Brasiléia e Xapuri de várias mortes por asfixia na aplicação do Tordon.
A GAZETA: Mas parece que agora a fórmula foi modificada.
Mesquita: Foi modificada para pior, para ser mais letal. Para economizar tempo e dinheiro, aplicam uma quantidade maior e aí exterminam tudo, de uma vez. Por isso que os grandes peixes foram embora ou já morreram. Estou fazendo uma cartilha mostrando as belezas e as riquezas que o Rio Acre possuía e o que restou dele agora.
A GAZETA: A propósito da formação de fazendas, pode-se dizer que o surgimento de inúmeros bairros de Rio Branco, a partir da década de setenta, às margens do Rio Acre, também contribuiu para a sua deterioração?
Mesquita: Rio Branco não poderia ter sido ocupada como foi. As margens do Rio Acre eram a última área verde a ser preservada. No entanto, com o êxodo rural e o surgimento desses bairros, foram destruídos no seu entorno nada menos do que 58 quilômetros de igarapés. Esses 58 quilômetros foram manilhados, entubados, poluídos, porque é mais fácil para a administração pública fazer assim: pegar um igarapé dentro da cidade, jogar o esgoto dentro, envolvê-lo com manilhas e colocar o asfalto em cima, achando que está tudo resolvido. Nunca se pensa em tratar esse esgoto, preservando o igarapé ou revitalizá-lo, para que se possa aproveitar a água, o peixe, a fauna e que essa fauna possa...
A GAZETA: Aí, o senhor já está apontando as soluções.
Mesquita: Sim. É preciso considerar que no Acre e por extensão na Amazônia os únicos corredores ecológicos ainda são os rios e igarapés. Mesmo com o desmatamento em suas margens, é ainda onde os animais se escondem e se locomovem. Saindo dali, estarão mortos.
A GAZETA: O problema é que custa dinheiro revitalizar um igarapé.
Mesquita: Nada disso. É simples e barato. Basta orientar e dar alguns sacos de cimento para os moradores canalizarem seus esgotos, enquanto o poder público constrói as estações de tratamento. Felizmente, hoje em Rio Branco, estão sendo construídas as ETEs do São Francisco, da Conquista. Se não fizemos isso no passado, vamos começar agora, já. Hoje, o Acre está vivendo um momento muito favorável com o legado de Chico Mendes, com o governador Jorge Viana, com a ministra Marina Silva, com o prefeito Raimundo Angelim e tantos outros. Digo isso por onde ando e com muito orgulho. Temos que aproveitar esse momento propício para resolver nossos problemas ambientais, para sonhar com uma qualidade de vida melhor. Se perdermos a capacidade de sonhar, a alegria de viver, de preservar nossas florestas, nossos rios, será o fim.
A GAZETA: Resumindo tudo, pode-se, então, concordar com o que alguns historiadores da Amazônia registraram que os "rios comandavam a vida". Se matarmos esses rios...
Mesquita: Morrendo esses rios, nós morreremos juntos. O que ainda poderia garantir uma sobrevida se-riam as águas do subsolo. Acontece que ainda não foi detectada nenhuma água de qualidade no subsolo no Acre. Já foram perfurados vários poços em Senador Guiomard, em Acrelândia e a água encontrada foi de péssima qualidade. Matando os rios, teríamos que importar água.
A GAZETA: O que seria um absurdo. Vivendo na maior bacia hidrográfica do mundo ter que importar água.
Mesquita: Não dá nem para pensar, mas é sério. Mesmo preservando os rios, os gestores públicos precisariam pensar na construção de uma grande bacia, um grande reservatório de água potável em Rio Branco.
A GAZETA: Um piscinão? (risos)
Mesquita: A construção de uma grande represa na AC 90, na Transeacreana, depois do bairro da Floresta. Este reservatório serviria como reserva para um período mais longo de estiagem, mas também como cartão-ambiental, área de pesquisas e de lazer. Não só isso, mas também como uma reserva estratégica.
A GAZETA: Por que estratégica?
Mesquita: Porque é preciso levar em conta que o Rio Acre é um rio internacional ou tri-nacional. Nasce no Peru, passa pela Bolívia e entra no Brasil. Ora, vamos supor que tenhamos qualquer conflito com um desses dois países. Com os bolivianos, por exemplo, que fizeram uma revolução outro dia. Um dia eles resolvem envenenar a água do Rio Acre. Morreremos sem saber do quê. O Brasil não teve problemas com o fornecimento do gás boliviano? Então... E não se diz também que, depois do petróleo, a próxima grande guerra será pela disputa das fontes de água potável?
A GAZETA: Para terminar mesmo, como é seu trabalho, sua pregação na universidade, nas escolas, no trabalho?
Mesquita: É difícil , mas gratificante. Às vezes, surpreendente, como aconteceu outro dia, quando estava fazendo uma palestra numa escola, no Seringal Catuaba, sobre a poluição do Rio Acre e um aluno levantou-se e jogou na minha cara: "pois é, professor, é tudo muito certo, tudo muito bonito o que senhor está dizendo, mas a bosta que vocês jogam lá no rio, lá na cidade, nós a bebemos com a água do rio aqui embaixo".
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